Professor titular de Teoria Política da Unesp, Marco Aurélio Nogueira escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Encadeamentos desastrosos


Uma sociedade fragmentada, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, é propensa a complôs, ações terroristas, lideranças autoritárias

Por Marco Aurélio Nogueira

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

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Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.

Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

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O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

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A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

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Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

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A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

*

É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.

Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.

Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.

Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.

Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

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