A política democrática é polarizada: nela formam-se diferentes polos, que disputam o poder e o voto dos eleitores. Quando esses polos enrijecem, cai-se em um beco aprisionado por um conflito paralisante entre dois blocos que se excluem um ao outro.
Nas sociedades atuais, as polarizações não costumam ser ideológicas: não se distinguem pela apresentação de projetos consistentes de sociedade. Movem-se por elucubrações fantasiosas, desinformação e narrativas passionais, com as quais buscam excitar e seduzir mentes e corações. A extrema direita “fascista” cresce a partir daí.
Os polos não precisam ser bem organizados. Podem ter brigadas de agitadores, mas tendem a se acomodar ao prestígio e ao carisma de certos líderes, regra geral performáticos e inflamados, que funcionam como referências organizacionais. O que costumamos chamar de populismo bebe dessa fonte. Partidos podem existir e auxiliar o líder a se afirmar. Mas o líder sempre tenderá a monopolizá-los, podendo até mesmo paralisá-los. Donald Trump, por exemplo, é hoje dono do Partido Republicano.
Líderes fortes tendem a não deixar sucessores, até mesmo porque calcificam o terreno em que poderiam emergir novas lideranças. Jean-Marie Le Pen talvez seja uma exceção emblemática: conseguiu deixar a coroa para sua filha, Marine. A herdeira, porém, sem deixar de lado a postura “fascista”, empreendeu uma “modernização” (retórica, procedimental, programática), tornando-se bem mais forte do que o pai. Hugo Chávez, na Venezuela, não teve como ser substituído à altura, e Nicolás Maduro empurrou o país para o caos.
Numa polarização enrijecida, o antagonismo é estreito: nós contra eles. Não há um terceiro termo com capacidade de dissolver a contraposição dos polos. Por esse motivo, a sensação que se tem é de que não há avanços, porque a energia se desperdiça na negação que um polo faz do outro, nos vetos cruzados que se repetem o tempo todo. Não sobra muito espaço para a formulação de projetos consistentes de sociedade.
Isso implica uma espécie de enfraquecimento dos que buscam construir pontes que fomentem o diálogo e ajudem a produzir consensos. Num passado não muito remoto, houve partidos de esquerda (comunistas, trabalhistas, social-democráticos) que promoviam inflexões ao centro, dado não possuírem maiorias para governar. Boa parte da história do Estado de bem-estar foi construída por inflexões desse tipo. Hoje, os partidos de esquerda não têm como replicar as práticas daquele passado. Só conseguem ser participantes “positivos” da política quando se abrem para o centro. Um bom exemplo pode estar na vitória dos trabalhistas na Inglaterra. O Partido Democrático na Itália e o PSOE na Espanha também trafegam por essa via.
Com as eleições deste ano, a França tornou-se um laboratório para se analisar a polarização em situações democráticas. Lá, três polos mostraram força eleitoral: a Nova Frente Popular (esquerda); o Juntos (coalizão governista, de centro); a Reunião Nacional (extrema direita). Todos os polos conquistaram importantes votos, com um expressivo avanço da extrema direita e da frente popular. O jogo jogado tornou-se tripolar, com os extremos batendo duro no polo centrista de Emmanuel Macron, que recuou.
O lado esquerdo do tabuleiro, que se unificou eleitoralmente, ainda não conseguiu se unificar politicamente. A resolução da luta interna entre a França Insubmissa, o Partido Socialista e os ambientalistas é crucial para que a esquerda atue como força de governo e atraia Macron para o campo democrático e republicano. Mas o impasse ameaça se prolongar, em parte por cálculos políticos do presidente francês.
Outra situação surge nos EUA após a desistência de Joe Biden, que reabriu a disputa entre democratas e republicanos. A misoginia racista de Trump permanece sendo o desafio. Se o Partido Democrata unificar suas diferentes correntes (que vão do centro à esquerda), terá como apresentar aos eleitores uma mensagem programática que abrace os direitos universais, defenda a democracia, dialogue com os trabalhadores e abra as portas para o futuro. Uma vitória poderá, então, ocorrer em uma disputa que parecia perdida.
As sociedades atuais não são facilmente “organizáveis”, as massas não se unificam com facilidade. Com os deslocamentos ocorridos no mundo do trabalho, suas associações perderam protagonismo. Os trabalhadores se converteram em “subalternos”, uma miríade de grupos e indivíduos desprovidos de canais associativos e mal alcançados pelos partidos de esquerda, que não conseguem traduzir politicamente as justas aspirações que explodem nas eleições.
A extrema direita tem sabido explorar a fragmentação social e interpelar os que se sentem ameaçados em seus equilíbrios existenciais. A esquerda, por sua vez, ainda lambe suas feridas, mas não morreu: avança quando se mostra capaz de dialogar e agir em comum acordo com o centro democrático, e com ele apresentar alguma proposta de transformação.
É uma situação que se anuncia no horizonte que temos pela frente.
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É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP