Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|A inconstitucional e vergonhosa anistia


A vergonhosa PEC 9/2023 perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente

Por Miguel Reale Júnior

A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

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Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

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A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

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Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

*

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

A partir de 2009, alterações legislativas visaram a implementar maior participação das mulheres nos partidos políticos e no processo eleitoral. Essas ações afirmativas receberam apoio significativo do Judiciário, em decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Estabeleceu-se no artigo 44, V, da Lei dos Partidos (Lei n.º 9.096/95) que os recursos partidários serão aplicados, no mínimo, no porcentual de 5% na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Por sua vez, conforme a Lei n.º 13.165 de 2015, determinou-se a reserva de no mínimo 5% e de no máximo 30% do montante do Fundo Partidário Eleitoral para aplicação nas campanhas de suas candidatas.

Todavia, o Congresso Nacional editou em 2019 a Lei n.º 13.831, por via da qual se introduzia na Lei dos Partidos Políticos o artigo 55-C, segundo o qual “a não observância do disposto no inciso V do caput do art. 44 desta lei, até o exercício de 2018, não ensejará a desaprovação das contas”. Retirou-se força cogente da obrigação de destinar 5% para a promoção da participação feminina nos partidos.

Em 2020 o TSE, respondendo à consulta da deputada Benedita da Silva, fixou o entendimento de caber a divisão da “fatia feminina” do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV entre candidatas negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas por cada partido. O mesmo critério deveria ser adotado para homens negros e brancos.

O Congresso, que em 2019 abonara o descumprimento das ações afirmativas para igualdade de gênero na vida política e eleitoral, no entanto, reconheceu o seu relevo ao dar dignidade constitucional àquelas ações, promulgando, em abril de 2022, a Emenda Constitucional (EC) n.º 117. Por essa emenda, introduziram-se no artigo 17 da Constituição os parágrafos 7.º e 8.º. Essas regras consagram a destinação de 5% do fundo dos partidos para a promoção da participação política da mulher, bem como a aplicação de até 30% do Fundo Eleitoral na campanha das candidatas.

Mas – tem sempre um mas –, nesta mesma emenda constitucional, que dava alçada constitucional às ações afirmativas, contraditoriamente, anistiava-se o descumprimento dessas ações nas eleições anteriores. Atribuía-se, portanto, caráter constitucional ao disposto no artigo 55-C da lei de 2019, acima reproduzido. No artigo 3.º desta EC, estipulou-se não serem aplicadas “sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução de valores, multa ou suspensão do fundo partidário, aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.

A incongruência é total: por um lado, perdoava-se o descumprimento da lei; por outro, se dava relevo às ações afirmativas. Em 2021, por exemplo, pela Emenda Constitucional n.º 111, decidiu-se que, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados devem ser contados em dobro.

Tendo-se estabelecido em nível constitucional a adoção de medidas favorecedoras da participação feminina na vida partidária e nas eleições, a todos de boa-fé poderia parecer que, agora, essas obrigações eram para valer. Se na eleição de 2022 as normas de promoção da igualdade de gênero e de cor não foram observadas, multas e demais sanções devem ser impostas aos partidos, pois só a eficácia delas tem capacidade de constranger ao futuro respeito de sua disciplina e garantir sua observância. Dessa forma, dar-se-ia concretude aos princípios reitores da Constituição, inscritos em seu preâmbulo e consistentes na solidariedade, na redução das desigualdades e no combate à discriminação por preconceito de sexo ou cor.

Contudo, reiterando comportamento contraditório, o Congresso examina agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 9/2023, segundo a qual não serão aplicadas quaisquer sanções, multa ou suspensão dos Fundos Partidário ou Eleitoral aos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos ou não destinaram os valores mínimos em razão de sexo ou de cor.

Esta vergonhosa proposta perpetua a desigualdade de gênero e de cor e destrói o espírito das ações afirmativas endossadas constitucionalmente. As minorias são falsamente atendidas em ano eleitoral, para serem depois abandonadas pelos partidos políticos, cujos deputados e senadores têm o desplante de usarem indevidamente o poder de legislar recebido do povo para garantir impunidade às suas entidades: flagrante, portanto, o desrespeito ao princípio da moralidade ao legislar em causa própria.

Revela-se que lei e normas constitucionais em prol da igualdade surgem para inglês ver, um faz de conta, pois logo lhes são retirados os efeitos, em afronta aos princípios cardiais de nosso arcabouço constitucional. A PEC n.º 9/2023 atinge a Constituição e toca matéria muito sensível, que só acentuará a desconfiança sobre o Parlamento.

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