As recentes eleições municipais consolidam a “política dos parlamentares”, uma inversão da “política dos governadores”, predominante na República Velha, de 1899 a 1930, mas ambas imbuídas do mesmo espírito: o fisiologismo.
Com Campos Salles, presidente eleito no final de 1898, instituiu-se a “harmonia” entre os Poderes e as forças sociais dominantes, em uma troca vantajosa e segura para todos os partícipes da trama política. O governo federal assegurava apoio aos governos estaduais e aos chefes oligárquicos – os “coronéis” – que, em contrapartida, garantiam o controle da eleição de deputados que seriam fiéis correligionários do presidente.
Os deputados abriam mão de sua autonomia, submetendo-se às determinações superiores do comando oligárquico, que assim reafirmava seu poder social e seu prestígio com a obtenção de favores do poder central. Governadores, por sua vez, recebiam, também, a aprovação do governo federal. Desse acerto saíam todos satisfeitos, pois atendidos os interesses dos diversos donos do poder.
Se com a política dos governadores sobressaltava-se o Executivo e minimizava-se o Legislativo, hoje com o Centrão 2.0 e as emendas parlamentares realça-se o Legislativo e enfraquece-se o Executivo.
A análise de Graziella Testa e outros no Caderno CRH, da Universidade Federal da Bahia, destaca ser diverso o Centrão, fenômeno atual, daquele surgido na Assembleia Constituinte. Porém, há alguma semelhança: consiste também na reunião de parlamentares de menor relevo, suprapartidária. É diferente por se impor ao Executivo em busca de condições para a reeleição. A junção hoje constrói-se na busca do atendimento dos interesses particulares de cada qual, pondo o Executivo na parede.
Segundo o mencionado estudo de Graziella Testa, o Centrão 2.0 é formado por oito partidos: PP, PR, PL, PTB, MDB, União Brasil, Patriota e Podemos. São deputados dispersos, mas unidos na arte da barganha.
O Centrão 2.0 surgiu em 2015, com a fragilização da presidência de Dilma Rousseff, graças à grande crise social e política facilitadora da criação de grupo suprapartidário composto pelo baixo clero, com condições de medir forças com o Executivo, vendendo governabilidade ao preço de vantagens na indicação de parcelas do Orçamento para seus redutos eleitorais. Assim, o novo Centrão conseguiu, em 2015, editar a Emenda Constitucional n.º 86, que tornou obrigatório o pagamento das emendas parlamentares individuais.
Um acordo, ao estilo da “cordialidade” da primeira República, se instaura. O deputado, pelas diversas emendas ao Orçamento (emendas individuais, de comissão, de bancada ou Pix), destina verba para o seu reduto eleitoral. O prefeito realiza obra propiciante de votos e se reelege ou elege correligionário, tornando-se o principal cabo eleitoral do deputado também em busca de se reeleger.
Assim, o deputado não mais depende do Executivo, pois para ser atendido no seu desejo precisa é ligar-se ao presidente da Câmara e ao seu cúmplice, o relator do Orçamento, em busca do grande objetivo: verba para o reduto eleitoral.
Essa via da reeleição de prefeitos pelo recebimento de verbas do Orçamento destinadas por parlamentares ficou comprovada agora. Levantamento demonstra que quase a totalidade dos 116 prefeitos mais beneficiados com emendas parlamentares foi reeleita. Os prefeitos mais presenteados conquistaram em média 72% dos votos. Entre os 274 prefeitos que receberam de R$ 1.695,80 a R$ 2.543,70 por eleitor ao longo do mandato, o índice de recondução foi de 91%. O município mais beneficiado por emendas no País, Barra D’Alcântara (PI), teve candidato único, como assinala matéria da Folha de S.Paulo de 9/10/2024, página A18.
Segundo pesquisa de O Globo (8/10/2024, página 4), nos 178 municípios indicados pela Controladoria-Geral da União (CGU) como principais mimoseados com verbas parlamentares, em cem deles o prefeito foi reeleito, e em outros 45 o sucessor é do mesmo grupo político.
A maioria dos integrantes do Centrão 2.0, autores das emendas, não tem linha ideológica, e os principais partidos poder-se-iam definir como de centro, “pero no mucho”, indo à direita ou à esquerda conforme a conveniência.
O que mais importa é a direção partidária não ditar vereditos por respeito às condições locais, como sucede no PSD de Gilberto Kassab, cuja posição varia de acordo com o vento: integrava o Ministério de Dilma Rousseff, mas votou pelo impeachment. Hoje tem três ministérios no governo Lula, mas seu presidente é secretário do governo de São Paulo, cujo titular é o principal opositor do governo federal.
Com manifesta maleabilidade, quando a questão é conflitiva recorre ao expediente de liberar a bancada, para cada qual votar livremente. Com essa versatilidade, arrebanha adeptos e elegeu em 6 de outubro o maior número de prefeitos e elevado contingente de vereadores. O Centrão 2.0 passa a ser forte na arena eleitoral como na legislativa.
A “política dos parlamentares” é o retrato da crise de governabilidade que nos assola.
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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA