Em meados do ano passado, o presidente Bolsonaro atacou duramente as urnas eletrônicas, reiterando acusações vazias de fraudes em 2014 e 2018.
Na campanha para minar a confiança nas eleições, o presidente da República, em 29 de julho, fez transmissão ao vivo, pelo YouTube e Facebook, tendo ao lado coronel da reserva, lotado na Casa Civil, a explicar ter ficado comprovada a fraude na eleição de Dilma contra Aécio. Fantasiosa, contudo, era essa suspeita de fraude, conforme demonstrou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que representou em 2 de agosto ao ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo do Inquérito 4.781/DF, referente à fake news, para ser apurada possível conduta criminosa do presidente da República, ao divulgar inverdades sobre a insegurança do voto eletrônico.
Apesar da medida persecutória do TSE, o presidente da República, dois dias depois, em 4 de agosto, deu entrevista à Rádio Jovem Pan, no programa Os pingos nos Is (https://youtu.be/uTst5tdNTtY), ao lado do deputado federal Felipe Barros, relator da Emenda Constitucional n.º 135, que instituía o voto impresso.
Tramitava na Polícia Federal inquérito sigiloso, n.º 1361, relativo às eleições de 2018. O sigilo do inquérito, estampado na capa em letras vermelhas, justificava-se, pois o TSE enviara à Polícia Federal dados reservados de acesso ao seu sistema para ajudar na apuração. O deputado Felipe Barros, pretextando ser relator da Emenda do Voto Impresso, solicitou acesso aos autos à Polícia Federal, que sem justa causa lhe foi dado.
Na entrevista, junto com o presidente da República, o deputado diz ter em mãos o inquérito sigiloso acima referido sobre o qual passa a discorrer. O presidente da República, por sua vez, tornou disponíveis os dados sigilosos do TSE nas redes sociais, criando riscos ao sistema do Tribunal.
O TSE, em face do ocorrido, no dia 9 de agosto representou ao Supremo para ser aberta investigação relativa à violação de sigilo funcional, seja por parte do delegado federal, que enviou cópia dos autos ao deputado, seja por parte do deputado e do próprio presidente da República, que, em coautoria, teriam divulgado informações sigilosas, crime previsto no art. 153, parágrafo 1.º-A, do Código Penal.
A prova do crime é incontestável por estar o mesmo registrado no YouTube e estar disponível o conteúdo sigiloso nas redes sociais. Assim, em 9 de agosto, inquérito foi instaurado contra Bolsonaro. O presidente, na sua luta contra as urnas eletrônicas, não tinha limites, alcançando o clímax em 7 de setembro, quando, em ato na Avenida Paulista, temeroso dos inquéritos contra ele instaurados, chegou a dizer que “só sairia da Presidência preso ou morto” e exaltou a desobediência à Justiça ao afirmar que não cumpriria decisão de Alexandre de Moraes.
A repercussão negativa dessa afronta à Justiça o levou a buscar conselhos de Michel Temer, que redigiu carta de compromisso, na qual Bolsonaro reiterou o respeito pelas instituições da República, intitulando Alexandre de Moraes, antes chamado de canalha, como jurista e professor.
Sob a égide desta inovadora atitude conciliadora, o presidente da República, ao receber o ofício solicitando sua oitiva no inquérito sobre violação de sigilo, peticionou afirmando que, em homenagem aos princípios da cooperação e boa-fé́ processuais, atenderia ao contido no Ofício, não interpondo recurso, apenas solicitando dilação de prazo para ser ouvido, sendo-lhe concedidos 60 dias para informar data e horário para o interrogatório.
O presidente da República não atendeu, como a correção processual exige, ao compromisso assumido, pois, em vez marcar data, recorreu da determinação de interrogatório, em comportamento contraditório com a manifestação anterior. Deslealdade processual manifesta, em arrepio à confiança depositada na palavra do presidente. Este contexto mostra um crime de responsabilidade?
Visa o crime de responsabilidade a afirmar a respeitabilidade da Administração Pública, que, ao ter uma ordem não cumprida, é atingida em sua autoridade. O presidente poderia ter informado que manteria o silêncio em interrogatório e que nada teria a dizer, sendo desnecessária a sua realização. Mas não, pelo contrário, manifestou interesse em ser ouvido. Ao se vencerem os 60 dias, apresentou, então, recurso sabidamente intempestivo a uma decisão de meses atrás, com a qual concordara. Em suma, o Bolsonaro conciliador era evidentemente uma fraude e fez joguete com o Supremo.
Assim, pauta-se o presidente pela intenção de afrontar a ordem judicial, pois, primeiramente, fez de conta em aceitar a decisão, ganhou prazo, para depois se arvorar contra o que antes acatara, agindo com claro abuso do direito de recorrer.
Hoje, pelo visto, a Bolsonaro não interessa mais ser cordato. Precisa satisfazer sua trupe, indo novamente ao confronto com o Supremo, para figurar como vítima de nova “facada”, agora do Judiciário. Uma traquinagem, como bem ressaltou Editorial de terça-feira passada, que se acrescenta à grave violação de sigilo.
DVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA