Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Mulheres de coragem


Registro, aqui, as figuras de corajosas advogadas, as primeiras a perorar nos tribunais e a proclamar e exigir a igualdade entre homens e mulheres

Por Miguel Reale Júnior

Na próxima semana comemora-se o Dia Internacional da Mulher, momento de renovar o compromisso com o combate à desigualdade e à discriminação de gênero.

Há pouco mais de um século, tendo por principal objetivo a obtenção do direito político da mulher de votar e de ser votada, Bertha Lutz, zoóloga, fundou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Essa entidade arregimentou centenas de mulheres e exerceu incisiva liderança na reivindicação sufragista, incluindo a Federação brasileira no movimento internacional. Contou essa batalha com importante colaboração de quatro advogadas: Myrthes Gomes de Campos; Natércia da Cunha Silveira; Elvira Komel; e Almerinda Farias Gama. Myrthes, brilhante oradora, primeira advogada brasileira, sustentou não haver lei proibindo o exercício da advocacia pela mulher. Natércia, gaúcha, e Elvira, mineira, foram as primeiras advogadas de seus Estados natais.

Natércia teve sempre atuação política, aderindo, ainda estudante, em 1923, à Revolução Federativa contra Borges de Medeiros. Formada em 1926, com 21 anos, advogou em Porto Alegre e, depois, no Rio de Janeiro, destacando-se na tribuna do júri. Ouçamos sua voz poderosa: em artigo no O Jornal de 18/7/1927, disse que “recusar à mulher a intervenção nos negócios públicos é violar o próprio princípio republicano; é calcar aos pés os mais nobres sentimentos de justiça e liberdade, que devem ser sempre o apanágio de todos os povos cultos. A única desigualdade admissível será a que se fundar na diversidade das qualidades intelectuais e morais do indivíduo”.

continua após a publicidade

E assevera a arguta advogada: “Como poderia exigir da mulher em geral que esposasse um ideal político, se propositadamente se tem procurado afastá-la da política, por incapaz? E para o filho, qual a vantagem em ter por mãe uma criatura inferior?”. Diante dessas questões, tira a conclusão: “Existe para a mulher um título eterno e inalienável, que domina e precede a todos – é o de criatura humana; e, como tal, tem ela direito ao mais completo desenvolvimento de todas as suas faculdades intelectuais”.

Por fim, com fina ironia, argumenta: “Não será o exercício dos direitos políticos que virá poluir a sua pureza; não será nos momentos de entusiasmo e de intensa vibração cívica, quando a alma promove nobres expansões de patriotismo, que a mulher se há de lembrar de praticar o mal”.

Natércia diverge de Bertha Lutz ao aderir à campanha em favor da Aliança Liberal em 1930. Sai da Federação para o Progresso Feminino e funda a Aliança Nacional de Mulheres, cujo objetivo era, também, “proporcionar proteção à mulher que trabalhava em todos os ramos de atividades, amparando-a na conquista de sua independência econômica”.

continua após a publicidade

Em meados de 1931, realiza o I Congresso Feminino Mineiro, em Belo Horizonte, com a advogada Elvira Komel, que preside o congresso, composto por representantes de 51 municípios de Minas. Na companhia de Elvira, Natércia pressionou a comissão elaboradora do Código Eleitoral, obtendo sucesso, pois em segunda versão o código estendeu o direito de voto à mulher, que, no entanto, não era obrigatório. Elvira, tristemente, falece em 1932.

Natércia e Bertha vieram a integrar a comissão de juristas encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição a ser submetido aos constituintes de 1933, no qual se assegurava o voto feminino. A Aliança Nacional de Mulheres estava, contudo, atenta não apenas à obtenção do voto feminino: solicita, por exemplo, à polícia, no carnaval de 1933, proibir homens fantasiados de mulher grávida, debochando de situação a ser respeitada, pedido deferido pelas autoridades (Diário da Noite de 22/2/1933).

Outra mulher destacável na luta sufragista foi Almerinda Farias Gama, alagoana criada no Pará e, depois, aos 30 anos, jornalista, residente no Rio de Janeiro, onde se uniu à Federação com Bertha Lutz. Mas tinha atuação política mais ampla, como presidente do Sindicato de Datilógrafas, em razão do que veio a ser delegada eleitoral classista para a Assembleia Constituinte de 1933. A primeira mulher e mulher preta a votar. Sua visão social a levou a ser fundadora do Partido Socialista Proletário do Brasil.

continua após a publicidade

Apesar de formada em Direito, Almerinda continuou jornalista, assessorando a Federação. Acolheu, em nome da entidade, o justo reclamo das garçonetes (A Noite, de 19/8/1933) relativo à exigência das mulheres que, trabalhando em bares e restaurantes, não obtinham inscrição no sindicato dos garçons, por não prever o estatuto a participação feminina.

Sua larga atuação justificou dar seu nome ao corredor que une o salão verde da Câmara dos Deputados ao plenário.

Registro as figuras dessas corajosas advogadas, as primeiras a perorar nos tribunais e as primeiras a proclamar e exigir a igualdade entre homens e mulheres, que o obscurantismo machista procurou sempre impedir, e deve ser definitivamente calado com a frase de Natércia no seu artigo de 1927: “Sentimentos de justiça, patriotismo e humanidade fazem mister assegurar à mulher parte franca e ativa no governo de sua Pátria”.

continua após a publicidade

*

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Na próxima semana comemora-se o Dia Internacional da Mulher, momento de renovar o compromisso com o combate à desigualdade e à discriminação de gênero.

Há pouco mais de um século, tendo por principal objetivo a obtenção do direito político da mulher de votar e de ser votada, Bertha Lutz, zoóloga, fundou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Essa entidade arregimentou centenas de mulheres e exerceu incisiva liderança na reivindicação sufragista, incluindo a Federação brasileira no movimento internacional. Contou essa batalha com importante colaboração de quatro advogadas: Myrthes Gomes de Campos; Natércia da Cunha Silveira; Elvira Komel; e Almerinda Farias Gama. Myrthes, brilhante oradora, primeira advogada brasileira, sustentou não haver lei proibindo o exercício da advocacia pela mulher. Natércia, gaúcha, e Elvira, mineira, foram as primeiras advogadas de seus Estados natais.

Natércia teve sempre atuação política, aderindo, ainda estudante, em 1923, à Revolução Federativa contra Borges de Medeiros. Formada em 1926, com 21 anos, advogou em Porto Alegre e, depois, no Rio de Janeiro, destacando-se na tribuna do júri. Ouçamos sua voz poderosa: em artigo no O Jornal de 18/7/1927, disse que “recusar à mulher a intervenção nos negócios públicos é violar o próprio princípio republicano; é calcar aos pés os mais nobres sentimentos de justiça e liberdade, que devem ser sempre o apanágio de todos os povos cultos. A única desigualdade admissível será a que se fundar na diversidade das qualidades intelectuais e morais do indivíduo”.

E assevera a arguta advogada: “Como poderia exigir da mulher em geral que esposasse um ideal político, se propositadamente se tem procurado afastá-la da política, por incapaz? E para o filho, qual a vantagem em ter por mãe uma criatura inferior?”. Diante dessas questões, tira a conclusão: “Existe para a mulher um título eterno e inalienável, que domina e precede a todos – é o de criatura humana; e, como tal, tem ela direito ao mais completo desenvolvimento de todas as suas faculdades intelectuais”.

Por fim, com fina ironia, argumenta: “Não será o exercício dos direitos políticos que virá poluir a sua pureza; não será nos momentos de entusiasmo e de intensa vibração cívica, quando a alma promove nobres expansões de patriotismo, que a mulher se há de lembrar de praticar o mal”.

Natércia diverge de Bertha Lutz ao aderir à campanha em favor da Aliança Liberal em 1930. Sai da Federação para o Progresso Feminino e funda a Aliança Nacional de Mulheres, cujo objetivo era, também, “proporcionar proteção à mulher que trabalhava em todos os ramos de atividades, amparando-a na conquista de sua independência econômica”.

Em meados de 1931, realiza o I Congresso Feminino Mineiro, em Belo Horizonte, com a advogada Elvira Komel, que preside o congresso, composto por representantes de 51 municípios de Minas. Na companhia de Elvira, Natércia pressionou a comissão elaboradora do Código Eleitoral, obtendo sucesso, pois em segunda versão o código estendeu o direito de voto à mulher, que, no entanto, não era obrigatório. Elvira, tristemente, falece em 1932.

Natércia e Bertha vieram a integrar a comissão de juristas encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição a ser submetido aos constituintes de 1933, no qual se assegurava o voto feminino. A Aliança Nacional de Mulheres estava, contudo, atenta não apenas à obtenção do voto feminino: solicita, por exemplo, à polícia, no carnaval de 1933, proibir homens fantasiados de mulher grávida, debochando de situação a ser respeitada, pedido deferido pelas autoridades (Diário da Noite de 22/2/1933).

Outra mulher destacável na luta sufragista foi Almerinda Farias Gama, alagoana criada no Pará e, depois, aos 30 anos, jornalista, residente no Rio de Janeiro, onde se uniu à Federação com Bertha Lutz. Mas tinha atuação política mais ampla, como presidente do Sindicato de Datilógrafas, em razão do que veio a ser delegada eleitoral classista para a Assembleia Constituinte de 1933. A primeira mulher e mulher preta a votar. Sua visão social a levou a ser fundadora do Partido Socialista Proletário do Brasil.

Apesar de formada em Direito, Almerinda continuou jornalista, assessorando a Federação. Acolheu, em nome da entidade, o justo reclamo das garçonetes (A Noite, de 19/8/1933) relativo à exigência das mulheres que, trabalhando em bares e restaurantes, não obtinham inscrição no sindicato dos garçons, por não prever o estatuto a participação feminina.

Sua larga atuação justificou dar seu nome ao corredor que une o salão verde da Câmara dos Deputados ao plenário.

Registro as figuras dessas corajosas advogadas, as primeiras a perorar nos tribunais e as primeiras a proclamar e exigir a igualdade entre homens e mulheres, que o obscurantismo machista procurou sempre impedir, e deve ser definitivamente calado com a frase de Natércia no seu artigo de 1927: “Sentimentos de justiça, patriotismo e humanidade fazem mister assegurar à mulher parte franca e ativa no governo de sua Pátria”.

*

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Na próxima semana comemora-se o Dia Internacional da Mulher, momento de renovar o compromisso com o combate à desigualdade e à discriminação de gênero.

Há pouco mais de um século, tendo por principal objetivo a obtenção do direito político da mulher de votar e de ser votada, Bertha Lutz, zoóloga, fundou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino. Essa entidade arregimentou centenas de mulheres e exerceu incisiva liderança na reivindicação sufragista, incluindo a Federação brasileira no movimento internacional. Contou essa batalha com importante colaboração de quatro advogadas: Myrthes Gomes de Campos; Natércia da Cunha Silveira; Elvira Komel; e Almerinda Farias Gama. Myrthes, brilhante oradora, primeira advogada brasileira, sustentou não haver lei proibindo o exercício da advocacia pela mulher. Natércia, gaúcha, e Elvira, mineira, foram as primeiras advogadas de seus Estados natais.

Natércia teve sempre atuação política, aderindo, ainda estudante, em 1923, à Revolução Federativa contra Borges de Medeiros. Formada em 1926, com 21 anos, advogou em Porto Alegre e, depois, no Rio de Janeiro, destacando-se na tribuna do júri. Ouçamos sua voz poderosa: em artigo no O Jornal de 18/7/1927, disse que “recusar à mulher a intervenção nos negócios públicos é violar o próprio princípio republicano; é calcar aos pés os mais nobres sentimentos de justiça e liberdade, que devem ser sempre o apanágio de todos os povos cultos. A única desigualdade admissível será a que se fundar na diversidade das qualidades intelectuais e morais do indivíduo”.

E assevera a arguta advogada: “Como poderia exigir da mulher em geral que esposasse um ideal político, se propositadamente se tem procurado afastá-la da política, por incapaz? E para o filho, qual a vantagem em ter por mãe uma criatura inferior?”. Diante dessas questões, tira a conclusão: “Existe para a mulher um título eterno e inalienável, que domina e precede a todos – é o de criatura humana; e, como tal, tem ela direito ao mais completo desenvolvimento de todas as suas faculdades intelectuais”.

Por fim, com fina ironia, argumenta: “Não será o exercício dos direitos políticos que virá poluir a sua pureza; não será nos momentos de entusiasmo e de intensa vibração cívica, quando a alma promove nobres expansões de patriotismo, que a mulher se há de lembrar de praticar o mal”.

Natércia diverge de Bertha Lutz ao aderir à campanha em favor da Aliança Liberal em 1930. Sai da Federação para o Progresso Feminino e funda a Aliança Nacional de Mulheres, cujo objetivo era, também, “proporcionar proteção à mulher que trabalhava em todos os ramos de atividades, amparando-a na conquista de sua independência econômica”.

Em meados de 1931, realiza o I Congresso Feminino Mineiro, em Belo Horizonte, com a advogada Elvira Komel, que preside o congresso, composto por representantes de 51 municípios de Minas. Na companhia de Elvira, Natércia pressionou a comissão elaboradora do Código Eleitoral, obtendo sucesso, pois em segunda versão o código estendeu o direito de voto à mulher, que, no entanto, não era obrigatório. Elvira, tristemente, falece em 1932.

Natércia e Bertha vieram a integrar a comissão de juristas encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição a ser submetido aos constituintes de 1933, no qual se assegurava o voto feminino. A Aliança Nacional de Mulheres estava, contudo, atenta não apenas à obtenção do voto feminino: solicita, por exemplo, à polícia, no carnaval de 1933, proibir homens fantasiados de mulher grávida, debochando de situação a ser respeitada, pedido deferido pelas autoridades (Diário da Noite de 22/2/1933).

Outra mulher destacável na luta sufragista foi Almerinda Farias Gama, alagoana criada no Pará e, depois, aos 30 anos, jornalista, residente no Rio de Janeiro, onde se uniu à Federação com Bertha Lutz. Mas tinha atuação política mais ampla, como presidente do Sindicato de Datilógrafas, em razão do que veio a ser delegada eleitoral classista para a Assembleia Constituinte de 1933. A primeira mulher e mulher preta a votar. Sua visão social a levou a ser fundadora do Partido Socialista Proletário do Brasil.

Apesar de formada em Direito, Almerinda continuou jornalista, assessorando a Federação. Acolheu, em nome da entidade, o justo reclamo das garçonetes (A Noite, de 19/8/1933) relativo à exigência das mulheres que, trabalhando em bares e restaurantes, não obtinham inscrição no sindicato dos garçons, por não prever o estatuto a participação feminina.

Sua larga atuação justificou dar seu nome ao corredor que une o salão verde da Câmara dos Deputados ao plenário.

Registro as figuras dessas corajosas advogadas, as primeiras a perorar nos tribunais e as primeiras a proclamar e exigir a igualdade entre homens e mulheres, que o obscurantismo machista procurou sempre impedir, e deve ser definitivamente calado com a frase de Natércia no seu artigo de 1927: “Sentimentos de justiça, patriotismo e humanidade fazem mister assegurar à mulher parte franca e ativa no governo de sua Pátria”.

*

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.