Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Resiliência


Dói viver no atual espectro de perversidade no Brasil, mas o arrependimento será insuperável se não buscarmos a paz

Por Miguel Reale Júnior

Stephan Zweig, um dos mais brilhantes intelectuais da primeira metade do século 20, resolveu dar fim à vida. Fugido do nazismo, morava, em fevereiro de 1942, na cidade serrana de Petrópolis, gostando cada dia mais do Brasil. Contudo, via a Europa destruída, faltando-lhe forças para começar de novo. Desistiu da humanidade, desalentado com a barbárie, malgrado seu otimismo quanto ao Brasil: via um povo de certa brandura, com desejo de conciliação, a viver de maneira amistosa, com possível união de todas as classes. Porém, nem esta visão idílica do Brasil lhe deu condições para insistir em sobreviver diante da violência do nazismo, esgotado por estar sem pátria havia muitos anos.

Houve muitas outras desgraças humanitárias desde 1942, mas, por outro lado, cresceu a consciência de novos direitos que dignificam a pessoa humana e valorizam a igualdade de gênero, o combate a qualquer tipo de discriminação de raça, origem, religião, nacionalidade. São conquistas que deveriam afastar a atrocidade.

Por isso mesmo, neste instante, soma-se à indignação, em face da invasão da Ucrânia, a imensa tristeza diante dos atos de terrorismo deslanchados pelo Hamas, com ataque mortífero contra jovens a dançar, decapitando bebês e sequestrando civis para melar acordo entre Israel e Arábia Saudita. A reação de Israel, todavia, embora justa, está sendo desmedida, desproporcional, atingindo a população pacífica, com a morte de muitas crianças. A desolação com a desumanidade é o sentimento dominante.

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E, no Brasil, nada nos socorre neste momento, pois o ufanismo de Zweig era um equívoco, próprio de quem, em busca de um refúgio seguro, ignorava a realidade subjacente.

Pelo contrário, infelizmente, vivemos uma guerra interna assustadora, na qual a população negra é a principal vítima. Facções, milícias e policiais corruptos compõem o poder paralelo, enquanto o poder estatal legítimo se deslegitima ao se aliar aos criminosos ou os extorquir e sendo assustador ao atacar toda uma comunidade indiscriminadamente.

O desânimo em vista da perversidade de nossa guerra interna tem por fonte as tristes operações policial-militares resultantes em chacinas. Assim foram a Operação Exceptis, há pouco mais dois anos em Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e recentemente, na Baixada Santista, com a Operação Escudo.

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A Operação Exceptis ocorreu entre 6h e 16h do dia 6 de maio de 2021. Contou com 200 agentes policiais a pé, quatro blindados e dois helicópteros. Após dois minutos de seu início, um inspetor da Polícia Civil desceu do blindado e foi morto com um tiro na cabeça. Em represália à morte do companheiro, agentes policiais foram brutais na comunidade, que viveu verdadeiro cenário de guerra.

Mas a chacina de Jacarezinho não é exceção. Ao contrário, em 2021 a letalidade policial aumentou 25,9%, chegando a 35,4% dos homicídios havidos na capital fluminense. As chacinas, neste ano, cresceram 266,7%, totalizando 44 ações, tendo sido notificados 185 mortos, em aumento de 302,2%. As chacinas policiais atingiram, ao longo do tempo, diversas comunidades, sendo vítimas principalmente negros e pobres.

A Operação Escudo, na Baixada Santista, foi represália ao assassinato de soldado, redundando na morte de 28 pessoas provocada pela polícia e na prisão de centenas, tendo sido algumas torturadas. Pior: a glorificação da violência policial pelo governador paulista é grave e consagra a autonomização da polícia, cujo descontrole pelos poderes políticos, conforme estudo de Daniel Hirata, leva à formação de milícias.

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Outra fonte de desânimo vem do fato de se já ter instituído no Rio de Janeiro um Poder Judiciário paralelo: bandidos do Comando Vermelho (CV), que assassinaram por engano três médicos, foram justiçados pela organização criminosa que os matou, como pena pelo equívoco cometido. Foi o cumprimento rápido da sentença editada pela justiça de um Estado paralelo eficiente.

Há a tentação de jogar a toalha diante da barbárie que se apresenta lá e aqui. Mas maior é o chamamento pela resiliência em prol da paz, a ser buscada mesmo com sucesso imprevisível. A paz interna depende não só de ações policiais, mas do descortínio de implantação de política criminal de cunho social, seja ocupando os espaços das periferias das grandes cidades com equipamentos sociais (esporte, teatro, cinema, shows), seja levando a justiça ao povo com a presença de juiz, promotor, delegado de polícia nos lugares mais distantes e desassistidos, como sucedeu com os Centros Integrados do Cidadão, os CICs, em São Paulo.

Cumpre fazer de cada bairro periférico a reprodução do que se fez em Jardim Ângela, reocupando o espaço com atividades integradoras, criando oportunidades para os jovens e instalando creches e escolas como centros de convivência.

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Dói viver no atual espectro de perversidade, mas o arrependimento será insuperável se não buscarmos a paz, munidos de todas as dúvidas, mas também de muita disposição para reivindicar políticas sociais e denunciar morticínios patrocinados pelo Estado.

*

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Stephan Zweig, um dos mais brilhantes intelectuais da primeira metade do século 20, resolveu dar fim à vida. Fugido do nazismo, morava, em fevereiro de 1942, na cidade serrana de Petrópolis, gostando cada dia mais do Brasil. Contudo, via a Europa destruída, faltando-lhe forças para começar de novo. Desistiu da humanidade, desalentado com a barbárie, malgrado seu otimismo quanto ao Brasil: via um povo de certa brandura, com desejo de conciliação, a viver de maneira amistosa, com possível união de todas as classes. Porém, nem esta visão idílica do Brasil lhe deu condições para insistir em sobreviver diante da violência do nazismo, esgotado por estar sem pátria havia muitos anos.

Houve muitas outras desgraças humanitárias desde 1942, mas, por outro lado, cresceu a consciência de novos direitos que dignificam a pessoa humana e valorizam a igualdade de gênero, o combate a qualquer tipo de discriminação de raça, origem, religião, nacionalidade. São conquistas que deveriam afastar a atrocidade.

Por isso mesmo, neste instante, soma-se à indignação, em face da invasão da Ucrânia, a imensa tristeza diante dos atos de terrorismo deslanchados pelo Hamas, com ataque mortífero contra jovens a dançar, decapitando bebês e sequestrando civis para melar acordo entre Israel e Arábia Saudita. A reação de Israel, todavia, embora justa, está sendo desmedida, desproporcional, atingindo a população pacífica, com a morte de muitas crianças. A desolação com a desumanidade é o sentimento dominante.

E, no Brasil, nada nos socorre neste momento, pois o ufanismo de Zweig era um equívoco, próprio de quem, em busca de um refúgio seguro, ignorava a realidade subjacente.

Pelo contrário, infelizmente, vivemos uma guerra interna assustadora, na qual a população negra é a principal vítima. Facções, milícias e policiais corruptos compõem o poder paralelo, enquanto o poder estatal legítimo se deslegitima ao se aliar aos criminosos ou os extorquir e sendo assustador ao atacar toda uma comunidade indiscriminadamente.

O desânimo em vista da perversidade de nossa guerra interna tem por fonte as tristes operações policial-militares resultantes em chacinas. Assim foram a Operação Exceptis, há pouco mais dois anos em Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e recentemente, na Baixada Santista, com a Operação Escudo.

A Operação Exceptis ocorreu entre 6h e 16h do dia 6 de maio de 2021. Contou com 200 agentes policiais a pé, quatro blindados e dois helicópteros. Após dois minutos de seu início, um inspetor da Polícia Civil desceu do blindado e foi morto com um tiro na cabeça. Em represália à morte do companheiro, agentes policiais foram brutais na comunidade, que viveu verdadeiro cenário de guerra.

Mas a chacina de Jacarezinho não é exceção. Ao contrário, em 2021 a letalidade policial aumentou 25,9%, chegando a 35,4% dos homicídios havidos na capital fluminense. As chacinas, neste ano, cresceram 266,7%, totalizando 44 ações, tendo sido notificados 185 mortos, em aumento de 302,2%. As chacinas policiais atingiram, ao longo do tempo, diversas comunidades, sendo vítimas principalmente negros e pobres.

A Operação Escudo, na Baixada Santista, foi represália ao assassinato de soldado, redundando na morte de 28 pessoas provocada pela polícia e na prisão de centenas, tendo sido algumas torturadas. Pior: a glorificação da violência policial pelo governador paulista é grave e consagra a autonomização da polícia, cujo descontrole pelos poderes políticos, conforme estudo de Daniel Hirata, leva à formação de milícias.

Outra fonte de desânimo vem do fato de se já ter instituído no Rio de Janeiro um Poder Judiciário paralelo: bandidos do Comando Vermelho (CV), que assassinaram por engano três médicos, foram justiçados pela organização criminosa que os matou, como pena pelo equívoco cometido. Foi o cumprimento rápido da sentença editada pela justiça de um Estado paralelo eficiente.

Há a tentação de jogar a toalha diante da barbárie que se apresenta lá e aqui. Mas maior é o chamamento pela resiliência em prol da paz, a ser buscada mesmo com sucesso imprevisível. A paz interna depende não só de ações policiais, mas do descortínio de implantação de política criminal de cunho social, seja ocupando os espaços das periferias das grandes cidades com equipamentos sociais (esporte, teatro, cinema, shows), seja levando a justiça ao povo com a presença de juiz, promotor, delegado de polícia nos lugares mais distantes e desassistidos, como sucedeu com os Centros Integrados do Cidadão, os CICs, em São Paulo.

Cumpre fazer de cada bairro periférico a reprodução do que se fez em Jardim Ângela, reocupando o espaço com atividades integradoras, criando oportunidades para os jovens e instalando creches e escolas como centros de convivência.

Dói viver no atual espectro de perversidade, mas o arrependimento será insuperável se não buscarmos a paz, munidos de todas as dúvidas, mas também de muita disposição para reivindicar políticas sociais e denunciar morticínios patrocinados pelo Estado.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Stephan Zweig, um dos mais brilhantes intelectuais da primeira metade do século 20, resolveu dar fim à vida. Fugido do nazismo, morava, em fevereiro de 1942, na cidade serrana de Petrópolis, gostando cada dia mais do Brasil. Contudo, via a Europa destruída, faltando-lhe forças para começar de novo. Desistiu da humanidade, desalentado com a barbárie, malgrado seu otimismo quanto ao Brasil: via um povo de certa brandura, com desejo de conciliação, a viver de maneira amistosa, com possível união de todas as classes. Porém, nem esta visão idílica do Brasil lhe deu condições para insistir em sobreviver diante da violência do nazismo, esgotado por estar sem pátria havia muitos anos.

Houve muitas outras desgraças humanitárias desde 1942, mas, por outro lado, cresceu a consciência de novos direitos que dignificam a pessoa humana e valorizam a igualdade de gênero, o combate a qualquer tipo de discriminação de raça, origem, religião, nacionalidade. São conquistas que deveriam afastar a atrocidade.

Por isso mesmo, neste instante, soma-se à indignação, em face da invasão da Ucrânia, a imensa tristeza diante dos atos de terrorismo deslanchados pelo Hamas, com ataque mortífero contra jovens a dançar, decapitando bebês e sequestrando civis para melar acordo entre Israel e Arábia Saudita. A reação de Israel, todavia, embora justa, está sendo desmedida, desproporcional, atingindo a população pacífica, com a morte de muitas crianças. A desolação com a desumanidade é o sentimento dominante.

E, no Brasil, nada nos socorre neste momento, pois o ufanismo de Zweig era um equívoco, próprio de quem, em busca de um refúgio seguro, ignorava a realidade subjacente.

Pelo contrário, infelizmente, vivemos uma guerra interna assustadora, na qual a população negra é a principal vítima. Facções, milícias e policiais corruptos compõem o poder paralelo, enquanto o poder estatal legítimo se deslegitima ao se aliar aos criminosos ou os extorquir e sendo assustador ao atacar toda uma comunidade indiscriminadamente.

O desânimo em vista da perversidade de nossa guerra interna tem por fonte as tristes operações policial-militares resultantes em chacinas. Assim foram a Operação Exceptis, há pouco mais dois anos em Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e recentemente, na Baixada Santista, com a Operação Escudo.

A Operação Exceptis ocorreu entre 6h e 16h do dia 6 de maio de 2021. Contou com 200 agentes policiais a pé, quatro blindados e dois helicópteros. Após dois minutos de seu início, um inspetor da Polícia Civil desceu do blindado e foi morto com um tiro na cabeça. Em represália à morte do companheiro, agentes policiais foram brutais na comunidade, que viveu verdadeiro cenário de guerra.

Mas a chacina de Jacarezinho não é exceção. Ao contrário, em 2021 a letalidade policial aumentou 25,9%, chegando a 35,4% dos homicídios havidos na capital fluminense. As chacinas, neste ano, cresceram 266,7%, totalizando 44 ações, tendo sido notificados 185 mortos, em aumento de 302,2%. As chacinas policiais atingiram, ao longo do tempo, diversas comunidades, sendo vítimas principalmente negros e pobres.

A Operação Escudo, na Baixada Santista, foi represália ao assassinato de soldado, redundando na morte de 28 pessoas provocada pela polícia e na prisão de centenas, tendo sido algumas torturadas. Pior: a glorificação da violência policial pelo governador paulista é grave e consagra a autonomização da polícia, cujo descontrole pelos poderes políticos, conforme estudo de Daniel Hirata, leva à formação de milícias.

Outra fonte de desânimo vem do fato de se já ter instituído no Rio de Janeiro um Poder Judiciário paralelo: bandidos do Comando Vermelho (CV), que assassinaram por engano três médicos, foram justiçados pela organização criminosa que os matou, como pena pelo equívoco cometido. Foi o cumprimento rápido da sentença editada pela justiça de um Estado paralelo eficiente.

Há a tentação de jogar a toalha diante da barbárie que se apresenta lá e aqui. Mas maior é o chamamento pela resiliência em prol da paz, a ser buscada mesmo com sucesso imprevisível. A paz interna depende não só de ações policiais, mas do descortínio de implantação de política criminal de cunho social, seja ocupando os espaços das periferias das grandes cidades com equipamentos sociais (esporte, teatro, cinema, shows), seja levando a justiça ao povo com a presença de juiz, promotor, delegado de polícia nos lugares mais distantes e desassistidos, como sucedeu com os Centros Integrados do Cidadão, os CICs, em São Paulo.

Cumpre fazer de cada bairro periférico a reprodução do que se fez em Jardim Ângela, reocupando o espaço com atividades integradoras, criando oportunidades para os jovens e instalando creches e escolas como centros de convivência.

Dói viver no atual espectro de perversidade, mas o arrependimento será insuperável se não buscarmos a paz, munidos de todas as dúvidas, mas também de muita disposição para reivindicar políticas sociais e denunciar morticínios patrocinados pelo Estado.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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