Advogado e Jornalista

Opinião|Cadeias cheias e ruas perigosas


Essa realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como normais, apesar de seus nefastos efeitos

Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

Temos a terceira maior população carcerária do mundo – prendemos muitas pessoas, investimos muitos recursos públicos aí –, mas não somos um país seguro. Há um alto índice de criminalidade e de insegurança, que afeta a vida das pessoas, das famílias, das empresas, dos negócios, de todo o País. Entender e enfrentar as causas desse cenário de disfuncionalidade do sistema de Justiça penal é, a meu ver, um imperativo cívico e ético, um cuidado necessário com a coletividade: com o presente e o futuro do Brasil.

A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma missão impossível. Neste momento, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) tem a oportunidade de corrigir um antigo erro seu e melhorar significativamente a qualidade das investigações que embasam as ações penais. Não adianta processar e prender muita gente, se os processos penais são superficialmente instruídos, se eles não desvendam a dinâmica do crime, se eles não prendem quem deveria ser preso.

Em 2003, o TJRJ aprovou uma orientação para os julgamentos penais com o seguinte teor: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Com isso, o tribunal do Rio de Janeiro formalizou uma prática habitual no País, mas que não costuma ser tão explícita: estabeleceu que a palavra de um policial deveria ser prova suficiente para condenar uma pessoa à prisão.

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Recentemente, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro solicitou a revisão dessa súmula, por desrespeitar importantes direitos fundamentais. Ela autoriza o Estado a pôr na cadeia uma pessoa sem nenhum elemento objetivo, apenas com base no testemunho de outra pessoa. Dou um exemplo. Segundo a orientação do TJRJ, um cidadão pode ser condenado por crime contra o Estado Democrático de Direito em razão de um policial dizer que ele estava participando de uma tentativa de golpe de Estado. Não seria necessário apresentar nenhuma outra prova. Esse modo de proceder, absolutamente fora de propósito, não é uma hipótese teórica. A Justiça utiliza-o diariamente no julgamento de muitos crimes; por exemplo, do tráfico de drogas.

É grave violação dos direitos individuais condenar uma pessoa com base apenas no testemunho de um policial. Ela fica privada do seu direito de defesa: se basta um policial afirmar que ela cometeu um crime para que o Estado possa lhe imputar esse crime, ela simplesmente fica à mercê do Estado e de seus agentes. No fim, em vez de ser uma avaliação objetiva das provas, o processo penal torna-se uma escolha subjetiva a respeito de qual palavra deve prevalecer. Não é difícil de perceber que, sob essa lógica, o réu é posto numa posição de grave desequilíbrio, de fragilidade, de não cidadania.

Mas a súmula do TJRJ não apenas fragiliza direitos individuais. Ela é prejudicial para todo o sistema de Justiça penal, uma vez que autoriza e favorece investigações frágeis. Se basta a palavra do policial para condenar uma pessoa, não há incentivo para realizar uma investigação séria – e aqui reside um dos principais problemas da orientação jurisprudencial do tribunal do Rio de Janeiro. O sistema de Justiça penal passa a se basear num trabalho probatório superficial, cada vez mais superficial.

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Se é suficiente a palavra do policial, por que os órgãos de investigação vão investir tempo e recursos para buscar mais provas, para entender mais a fundo o que se passou? Qual será o incentivo para que se realize uma apuração detalhada, para que se conduza um trabalho de inteligência? O caso já está resolvido a partir do momento em que se tem um policial disposto a testemunhar no processo, mesmo que existam indícios divergentes.

Eis uma das razões pelas quais colocamos cada vez mais pessoas na cadeia, mas as cadeias do crime continuam intactas. Em vez de o inquérito policial e o processo penal serem ocasiões de desvendar a dinâmica do crime, eles se tornam uma indústria de pôr gente na cadeia, sem apurar muito, sem entender o que se passou, sem revelar elementos mínimos para a prevenção de novos crimes. É tudo um grande mistério – ninguém sabe exatamente o que ocorreu no caso que está sendo julgado –, mas está lá a palavra do policial apta a condenar o acusado. Há uma aparência de eficiência, um simulacro de produtividade.

Cadeias cheias e ruas perigosas. Essa realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como normais – alguns deles chegam a se tornar súmula de tribunal –, apesar de seus nefastos efeitos sistêmicos. Defensor incansável da necessidade de uma atividade probatória mais técnica, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhece que só assim, com processos penais baseados em provas consistentes, se pode “condenar quem deve ser condenado e absolver quem deve ser absolvido”. Nessa tarefa, um grande aliado, lembra o ministro do STJ, são as câmeras corporais dos policiais.

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A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma utopia. Há caminhos possíveis e eles são conhecidos.

*

ADVOGADO

Temos a terceira maior população carcerária do mundo – prendemos muitas pessoas, investimos muitos recursos públicos aí –, mas não somos um país seguro. Há um alto índice de criminalidade e de insegurança, que afeta a vida das pessoas, das famílias, das empresas, dos negócios, de todo o País. Entender e enfrentar as causas desse cenário de disfuncionalidade do sistema de Justiça penal é, a meu ver, um imperativo cívico e ético, um cuidado necessário com a coletividade: com o presente e o futuro do Brasil.

A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma missão impossível. Neste momento, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) tem a oportunidade de corrigir um antigo erro seu e melhorar significativamente a qualidade das investigações que embasam as ações penais. Não adianta processar e prender muita gente, se os processos penais são superficialmente instruídos, se eles não desvendam a dinâmica do crime, se eles não prendem quem deveria ser preso.

Em 2003, o TJRJ aprovou uma orientação para os julgamentos penais com o seguinte teor: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Com isso, o tribunal do Rio de Janeiro formalizou uma prática habitual no País, mas que não costuma ser tão explícita: estabeleceu que a palavra de um policial deveria ser prova suficiente para condenar uma pessoa à prisão.

Recentemente, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro solicitou a revisão dessa súmula, por desrespeitar importantes direitos fundamentais. Ela autoriza o Estado a pôr na cadeia uma pessoa sem nenhum elemento objetivo, apenas com base no testemunho de outra pessoa. Dou um exemplo. Segundo a orientação do TJRJ, um cidadão pode ser condenado por crime contra o Estado Democrático de Direito em razão de um policial dizer que ele estava participando de uma tentativa de golpe de Estado. Não seria necessário apresentar nenhuma outra prova. Esse modo de proceder, absolutamente fora de propósito, não é uma hipótese teórica. A Justiça utiliza-o diariamente no julgamento de muitos crimes; por exemplo, do tráfico de drogas.

É grave violação dos direitos individuais condenar uma pessoa com base apenas no testemunho de um policial. Ela fica privada do seu direito de defesa: se basta um policial afirmar que ela cometeu um crime para que o Estado possa lhe imputar esse crime, ela simplesmente fica à mercê do Estado e de seus agentes. No fim, em vez de ser uma avaliação objetiva das provas, o processo penal torna-se uma escolha subjetiva a respeito de qual palavra deve prevalecer. Não é difícil de perceber que, sob essa lógica, o réu é posto numa posição de grave desequilíbrio, de fragilidade, de não cidadania.

Mas a súmula do TJRJ não apenas fragiliza direitos individuais. Ela é prejudicial para todo o sistema de Justiça penal, uma vez que autoriza e favorece investigações frágeis. Se basta a palavra do policial para condenar uma pessoa, não há incentivo para realizar uma investigação séria – e aqui reside um dos principais problemas da orientação jurisprudencial do tribunal do Rio de Janeiro. O sistema de Justiça penal passa a se basear num trabalho probatório superficial, cada vez mais superficial.

Se é suficiente a palavra do policial, por que os órgãos de investigação vão investir tempo e recursos para buscar mais provas, para entender mais a fundo o que se passou? Qual será o incentivo para que se realize uma apuração detalhada, para que se conduza um trabalho de inteligência? O caso já está resolvido a partir do momento em que se tem um policial disposto a testemunhar no processo, mesmo que existam indícios divergentes.

Eis uma das razões pelas quais colocamos cada vez mais pessoas na cadeia, mas as cadeias do crime continuam intactas. Em vez de o inquérito policial e o processo penal serem ocasiões de desvendar a dinâmica do crime, eles se tornam uma indústria de pôr gente na cadeia, sem apurar muito, sem entender o que se passou, sem revelar elementos mínimos para a prevenção de novos crimes. É tudo um grande mistério – ninguém sabe exatamente o que ocorreu no caso que está sendo julgado –, mas está lá a palavra do policial apta a condenar o acusado. Há uma aparência de eficiência, um simulacro de produtividade.

Cadeias cheias e ruas perigosas. Essa realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como normais – alguns deles chegam a se tornar súmula de tribunal –, apesar de seus nefastos efeitos sistêmicos. Defensor incansável da necessidade de uma atividade probatória mais técnica, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhece que só assim, com processos penais baseados em provas consistentes, se pode “condenar quem deve ser condenado e absolver quem deve ser absolvido”. Nessa tarefa, um grande aliado, lembra o ministro do STJ, são as câmeras corporais dos policiais.

A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma utopia. Há caminhos possíveis e eles são conhecidos.

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ADVOGADO

Temos a terceira maior população carcerária do mundo – prendemos muitas pessoas, investimos muitos recursos públicos aí –, mas não somos um país seguro. Há um alto índice de criminalidade e de insegurança, que afeta a vida das pessoas, das famílias, das empresas, dos negócios, de todo o País. Entender e enfrentar as causas desse cenário de disfuncionalidade do sistema de Justiça penal é, a meu ver, um imperativo cívico e ético, um cuidado necessário com a coletividade: com o presente e o futuro do Brasil.

A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma missão impossível. Neste momento, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) tem a oportunidade de corrigir um antigo erro seu e melhorar significativamente a qualidade das investigações que embasam as ações penais. Não adianta processar e prender muita gente, se os processos penais são superficialmente instruídos, se eles não desvendam a dinâmica do crime, se eles não prendem quem deveria ser preso.

Em 2003, o TJRJ aprovou uma orientação para os julgamentos penais com o seguinte teor: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Com isso, o tribunal do Rio de Janeiro formalizou uma prática habitual no País, mas que não costuma ser tão explícita: estabeleceu que a palavra de um policial deveria ser prova suficiente para condenar uma pessoa à prisão.

Recentemente, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro solicitou a revisão dessa súmula, por desrespeitar importantes direitos fundamentais. Ela autoriza o Estado a pôr na cadeia uma pessoa sem nenhum elemento objetivo, apenas com base no testemunho de outra pessoa. Dou um exemplo. Segundo a orientação do TJRJ, um cidadão pode ser condenado por crime contra o Estado Democrático de Direito em razão de um policial dizer que ele estava participando de uma tentativa de golpe de Estado. Não seria necessário apresentar nenhuma outra prova. Esse modo de proceder, absolutamente fora de propósito, não é uma hipótese teórica. A Justiça utiliza-o diariamente no julgamento de muitos crimes; por exemplo, do tráfico de drogas.

É grave violação dos direitos individuais condenar uma pessoa com base apenas no testemunho de um policial. Ela fica privada do seu direito de defesa: se basta um policial afirmar que ela cometeu um crime para que o Estado possa lhe imputar esse crime, ela simplesmente fica à mercê do Estado e de seus agentes. No fim, em vez de ser uma avaliação objetiva das provas, o processo penal torna-se uma escolha subjetiva a respeito de qual palavra deve prevalecer. Não é difícil de perceber que, sob essa lógica, o réu é posto numa posição de grave desequilíbrio, de fragilidade, de não cidadania.

Mas a súmula do TJRJ não apenas fragiliza direitos individuais. Ela é prejudicial para todo o sistema de Justiça penal, uma vez que autoriza e favorece investigações frágeis. Se basta a palavra do policial para condenar uma pessoa, não há incentivo para realizar uma investigação séria – e aqui reside um dos principais problemas da orientação jurisprudencial do tribunal do Rio de Janeiro. O sistema de Justiça penal passa a se basear num trabalho probatório superficial, cada vez mais superficial.

Se é suficiente a palavra do policial, por que os órgãos de investigação vão investir tempo e recursos para buscar mais provas, para entender mais a fundo o que se passou? Qual será o incentivo para que se realize uma apuração detalhada, para que se conduza um trabalho de inteligência? O caso já está resolvido a partir do momento em que se tem um policial disposto a testemunhar no processo, mesmo que existam indícios divergentes.

Eis uma das razões pelas quais colocamos cada vez mais pessoas na cadeia, mas as cadeias do crime continuam intactas. Em vez de o inquérito policial e o processo penal serem ocasiões de desvendar a dinâmica do crime, eles se tornam uma indústria de pôr gente na cadeia, sem apurar muito, sem entender o que se passou, sem revelar elementos mínimos para a prevenção de novos crimes. É tudo um grande mistério – ninguém sabe exatamente o que ocorreu no caso que está sendo julgado –, mas está lá a palavra do policial apta a condenar o acusado. Há uma aparência de eficiência, um simulacro de produtividade.

Cadeias cheias e ruas perigosas. Essa realidade não é fruto do acaso, mas de modos de proceder incorporados como normais – alguns deles chegam a se tornar súmula de tribunal –, apesar de seus nefastos efeitos sistêmicos. Defensor incansável da necessidade de uma atividade probatória mais técnica, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhece que só assim, com processos penais baseados em provas consistentes, se pode “condenar quem deve ser condenado e absolver quem deve ser absolvido”. Nessa tarefa, um grande aliado, lembra o ministro do STJ, são as câmeras corporais dos policiais.

A melhoria do sistema de Justiça penal não é uma utopia. Há caminhos possíveis e eles são conhecidos.

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