Advogado e Jornalista

Opinião|O direito de defesa e a erosão da democracia


O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas do Brasil

Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

Poucos dias antes de seu falecimento, em julho deste ano, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1989 a 2007, referindo-se ao trabalho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), escreveu: “A luta pelo direito de defesa é e deve ser permanente, faz parte do processo civilizatório. Mas em alguns momentos, quando vemos surgir movimentos antidemocráticos aqui e ali, quando ideias de recrudescimento penal ganham corpo em detrimento da educação, da saúde e da convivência pacífica, essa luta se torna ainda mais necessária”. E concluiu: “Lutar pelas garantias individuais de pessoas que, para muitos, não teriam mais direito algum é, em essência, lutar pela democracia”.

Ao primeiro contato, a vinculação entre direito de defesa e regime democrático pode soar como um recurso retórico. Até porque o período pós-Constituição de 1988 – tempo de reinstauração do Estado Democrático de Direito, com o restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais – tem sido, no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, uma época de enfraquecimento da proteção do indivíduo ante o Estado. Sob o discurso de maior eficiência na repressão à criminalidade e à impunidade, operou-se significativa redução das garantias penais.

Não digo uma novidade. A própria fundação do IDDD, em 2002, foi uma reação às violações constantes do direito de defesa no País. Apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido princípios e direitos sobre o tema – como o contraditório, a presunção de inocência, a prova lícita e a assistência jurídica –, tais previsões mostraram-se insuficientes por si sós para assegurar a efetividade do direito de defesa.

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A situação sempre me pareceu paradoxal. A Constituição de 1988 promoveu uma positiva, plural e democrática ressignificação axiológica de todo o ordenamento jurídico. No entanto, em matéria penal e processual penal, sua missão civilizatória mostrou-se pouco efetiva.

Pois bem, os embates e movimentos antidemocráticos dos últimos anos, que culminaram no 8 de Janeiro, fizeram-me olhar de outra forma para a relativização do direito de defesa e das garantias penais. A trajetória de desproteção do indivíduo ante o Estado na seara penal deixou de ser um contraponto ao que seria o progresso civilizatório pós-1988. Na verdade, esse progresso era apenas aparente. Em vez de paradoxal, a relativização do direito de defesa passou a ser sintoma antecipado de um estado de coisas bastante preocupante: junto de uma estrutura jurídica formalmente democrática, enraizou-se uma cultura de negação dos direitos e de menosprezo das minorias.

Eis o que gostaria de destacar. Em alguma medida, a compreensão punitivista da esfera penal foi onde transpareceu, em primeiro lugar, a oposição aos princípios e valores democráticos. O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas brasileiras. Por isso, as palavras de Sepúlveda Pertence são rigorosamente verdadeiras. Lutar pelo direito de defesa é lutar pela democracia.

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Essa nova percepção – em vez de exceção, sintoma – não deveria estranhar. As garantias penais – em concreto, o princípio da presunção de inocência, com seu corolário e garantidor, o direito de defesa – são a face mais imediata da dimensão contramajoritária do Estado Democrático de Direito. Elas fixam limites ao impulso do linchamento e do julgamento sumário, atuando num tema especialmente sensível do dia a dia da população: a segurança pública. Nada mais natural, portanto, que elas fossem as primeiras a sofrer resistência.

Não por acaso, políticos de corte populista, conservadores ou progressistas, permitem – ou mesmo promovem – retrocessos na legislação penal e processual penal. A trajetória da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), com seus acréscimos contínuos, é prova disso. Não por acaso, grupos políticos saudosistas da ditadura são os que mais desprezam as garantias penais e tentam implantar leis violadoras do direito de defesa.

Sem dúvida, os investigados e acusados nos atos do 8 de Janeiro têm, como todos os cidadãos, pleno direito de defesa. O Estado Democrático de Direito não opera com redução de cidadania. Mas isso não altera os fatos: ao longo dos últimos anos, os organizadores e apoiadores da intentona golpista atacaram não apenas a democracia, como também o direito de defesa e os princípios civilizatórios do Direito Penal. Esses dois ataques não são desvinculados. Integram a mesma bandeira autoritária que, sob a alegação de defesa da maioria, apregoa o desprezo do outro e a negação de sua cidadania.

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Na próxima vez que for instado a relativizar alguma garantia penal, que o STF tenha presente essa realidade. Não convém contribuir com trajetórias de erosão civilizatória e institucional, que é por onde as democracias morrem.

P.S.: Lança-se hoje, em São Paulo, o livro A defesa: homenagem ao advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que é também uma justa e necessária homenagem ao exercício do direito de defesa.

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Poucos dias antes de seu falecimento, em julho deste ano, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1989 a 2007, referindo-se ao trabalho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), escreveu: “A luta pelo direito de defesa é e deve ser permanente, faz parte do processo civilizatório. Mas em alguns momentos, quando vemos surgir movimentos antidemocráticos aqui e ali, quando ideias de recrudescimento penal ganham corpo em detrimento da educação, da saúde e da convivência pacífica, essa luta se torna ainda mais necessária”. E concluiu: “Lutar pelas garantias individuais de pessoas que, para muitos, não teriam mais direito algum é, em essência, lutar pela democracia”.

Ao primeiro contato, a vinculação entre direito de defesa e regime democrático pode soar como um recurso retórico. Até porque o período pós-Constituição de 1988 – tempo de reinstauração do Estado Democrático de Direito, com o restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais – tem sido, no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, uma época de enfraquecimento da proteção do indivíduo ante o Estado. Sob o discurso de maior eficiência na repressão à criminalidade e à impunidade, operou-se significativa redução das garantias penais.

Não digo uma novidade. A própria fundação do IDDD, em 2002, foi uma reação às violações constantes do direito de defesa no País. Apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido princípios e direitos sobre o tema – como o contraditório, a presunção de inocência, a prova lícita e a assistência jurídica –, tais previsões mostraram-se insuficientes por si sós para assegurar a efetividade do direito de defesa.

A situação sempre me pareceu paradoxal. A Constituição de 1988 promoveu uma positiva, plural e democrática ressignificação axiológica de todo o ordenamento jurídico. No entanto, em matéria penal e processual penal, sua missão civilizatória mostrou-se pouco efetiva.

Pois bem, os embates e movimentos antidemocráticos dos últimos anos, que culminaram no 8 de Janeiro, fizeram-me olhar de outra forma para a relativização do direito de defesa e das garantias penais. A trajetória de desproteção do indivíduo ante o Estado na seara penal deixou de ser um contraponto ao que seria o progresso civilizatório pós-1988. Na verdade, esse progresso era apenas aparente. Em vez de paradoxal, a relativização do direito de defesa passou a ser sintoma antecipado de um estado de coisas bastante preocupante: junto de uma estrutura jurídica formalmente democrática, enraizou-se uma cultura de negação dos direitos e de menosprezo das minorias.

Eis o que gostaria de destacar. Em alguma medida, a compreensão punitivista da esfera penal foi onde transpareceu, em primeiro lugar, a oposição aos princípios e valores democráticos. O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas brasileiras. Por isso, as palavras de Sepúlveda Pertence são rigorosamente verdadeiras. Lutar pelo direito de defesa é lutar pela democracia.

Essa nova percepção – em vez de exceção, sintoma – não deveria estranhar. As garantias penais – em concreto, o princípio da presunção de inocência, com seu corolário e garantidor, o direito de defesa – são a face mais imediata da dimensão contramajoritária do Estado Democrático de Direito. Elas fixam limites ao impulso do linchamento e do julgamento sumário, atuando num tema especialmente sensível do dia a dia da população: a segurança pública. Nada mais natural, portanto, que elas fossem as primeiras a sofrer resistência.

Não por acaso, políticos de corte populista, conservadores ou progressistas, permitem – ou mesmo promovem – retrocessos na legislação penal e processual penal. A trajetória da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), com seus acréscimos contínuos, é prova disso. Não por acaso, grupos políticos saudosistas da ditadura são os que mais desprezam as garantias penais e tentam implantar leis violadoras do direito de defesa.

Sem dúvida, os investigados e acusados nos atos do 8 de Janeiro têm, como todos os cidadãos, pleno direito de defesa. O Estado Democrático de Direito não opera com redução de cidadania. Mas isso não altera os fatos: ao longo dos últimos anos, os organizadores e apoiadores da intentona golpista atacaram não apenas a democracia, como também o direito de defesa e os princípios civilizatórios do Direito Penal. Esses dois ataques não são desvinculados. Integram a mesma bandeira autoritária que, sob a alegação de defesa da maioria, apregoa o desprezo do outro e a negação de sua cidadania.

Na próxima vez que for instado a relativizar alguma garantia penal, que o STF tenha presente essa realidade. Não convém contribuir com trajetórias de erosão civilizatória e institucional, que é por onde as democracias morrem.

P.S.: Lança-se hoje, em São Paulo, o livro A defesa: homenagem ao advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que é também uma justa e necessária homenagem ao exercício do direito de defesa.

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Poucos dias antes de seu falecimento, em julho deste ano, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1989 a 2007, referindo-se ao trabalho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), escreveu: “A luta pelo direito de defesa é e deve ser permanente, faz parte do processo civilizatório. Mas em alguns momentos, quando vemos surgir movimentos antidemocráticos aqui e ali, quando ideias de recrudescimento penal ganham corpo em detrimento da educação, da saúde e da convivência pacífica, essa luta se torna ainda mais necessária”. E concluiu: “Lutar pelas garantias individuais de pessoas que, para muitos, não teriam mais direito algum é, em essência, lutar pela democracia”.

Ao primeiro contato, a vinculação entre direito de defesa e regime democrático pode soar como um recurso retórico. Até porque o período pós-Constituição de 1988 – tempo de reinstauração do Estado Democrático de Direito, com o restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais – tem sido, no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, uma época de enfraquecimento da proteção do indivíduo ante o Estado. Sob o discurso de maior eficiência na repressão à criminalidade e à impunidade, operou-se significativa redução das garantias penais.

Não digo uma novidade. A própria fundação do IDDD, em 2002, foi uma reação às violações constantes do direito de defesa no País. Apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido princípios e direitos sobre o tema – como o contraditório, a presunção de inocência, a prova lícita e a assistência jurídica –, tais previsões mostraram-se insuficientes por si sós para assegurar a efetividade do direito de defesa.

A situação sempre me pareceu paradoxal. A Constituição de 1988 promoveu uma positiva, plural e democrática ressignificação axiológica de todo o ordenamento jurídico. No entanto, em matéria penal e processual penal, sua missão civilizatória mostrou-se pouco efetiva.

Pois bem, os embates e movimentos antidemocráticos dos últimos anos, que culminaram no 8 de Janeiro, fizeram-me olhar de outra forma para a relativização do direito de defesa e das garantias penais. A trajetória de desproteção do indivíduo ante o Estado na seara penal deixou de ser um contraponto ao que seria o progresso civilizatório pós-1988. Na verdade, esse progresso era apenas aparente. Em vez de paradoxal, a relativização do direito de defesa passou a ser sintoma antecipado de um estado de coisas bastante preocupante: junto de uma estrutura jurídica formalmente democrática, enraizou-se uma cultura de negação dos direitos e de menosprezo das minorias.

Eis o que gostaria de destacar. Em alguma medida, a compreensão punitivista da esfera penal foi onde transpareceu, em primeiro lugar, a oposição aos princípios e valores democráticos. O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas brasileiras. Por isso, as palavras de Sepúlveda Pertence são rigorosamente verdadeiras. Lutar pelo direito de defesa é lutar pela democracia.

Essa nova percepção – em vez de exceção, sintoma – não deveria estranhar. As garantias penais – em concreto, o princípio da presunção de inocência, com seu corolário e garantidor, o direito de defesa – são a face mais imediata da dimensão contramajoritária do Estado Democrático de Direito. Elas fixam limites ao impulso do linchamento e do julgamento sumário, atuando num tema especialmente sensível do dia a dia da população: a segurança pública. Nada mais natural, portanto, que elas fossem as primeiras a sofrer resistência.

Não por acaso, políticos de corte populista, conservadores ou progressistas, permitem – ou mesmo promovem – retrocessos na legislação penal e processual penal. A trajetória da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), com seus acréscimos contínuos, é prova disso. Não por acaso, grupos políticos saudosistas da ditadura são os que mais desprezam as garantias penais e tentam implantar leis violadoras do direito de defesa.

Sem dúvida, os investigados e acusados nos atos do 8 de Janeiro têm, como todos os cidadãos, pleno direito de defesa. O Estado Democrático de Direito não opera com redução de cidadania. Mas isso não altera os fatos: ao longo dos últimos anos, os organizadores e apoiadores da intentona golpista atacaram não apenas a democracia, como também o direito de defesa e os princípios civilizatórios do Direito Penal. Esses dois ataques não são desvinculados. Integram a mesma bandeira autoritária que, sob a alegação de defesa da maioria, apregoa o desprezo do outro e a negação de sua cidadania.

Na próxima vez que for instado a relativizar alguma garantia penal, que o STF tenha presente essa realidade. Não convém contribuir com trajetórias de erosão civilizatória e institucional, que é por onde as democracias morrem.

P.S.: Lança-se hoje, em São Paulo, o livro A defesa: homenagem ao advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que é também uma justa e necessária homenagem ao exercício do direito de defesa.

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Poucos dias antes de seu falecimento, em julho deste ano, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1989 a 2007, referindo-se ao trabalho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), escreveu: “A luta pelo direito de defesa é e deve ser permanente, faz parte do processo civilizatório. Mas em alguns momentos, quando vemos surgir movimentos antidemocráticos aqui e ali, quando ideias de recrudescimento penal ganham corpo em detrimento da educação, da saúde e da convivência pacífica, essa luta se torna ainda mais necessária”. E concluiu: “Lutar pelas garantias individuais de pessoas que, para muitos, não teriam mais direito algum é, em essência, lutar pela democracia”.

Ao primeiro contato, a vinculação entre direito de defesa e regime democrático pode soar como um recurso retórico. Até porque o período pós-Constituição de 1988 – tempo de reinstauração do Estado Democrático de Direito, com o restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais – tem sido, no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, uma época de enfraquecimento da proteção do indivíduo ante o Estado. Sob o discurso de maior eficiência na repressão à criminalidade e à impunidade, operou-se significativa redução das garantias penais.

Não digo uma novidade. A própria fundação do IDDD, em 2002, foi uma reação às violações constantes do direito de defesa no País. Apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido princípios e direitos sobre o tema – como o contraditório, a presunção de inocência, a prova lícita e a assistência jurídica –, tais previsões mostraram-se insuficientes por si sós para assegurar a efetividade do direito de defesa.

A situação sempre me pareceu paradoxal. A Constituição de 1988 promoveu uma positiva, plural e democrática ressignificação axiológica de todo o ordenamento jurídico. No entanto, em matéria penal e processual penal, sua missão civilizatória mostrou-se pouco efetiva.

Pois bem, os embates e movimentos antidemocráticos dos últimos anos, que culminaram no 8 de Janeiro, fizeram-me olhar de outra forma para a relativização do direito de defesa e das garantias penais. A trajetória de desproteção do indivíduo ante o Estado na seara penal deixou de ser um contraponto ao que seria o progresso civilizatório pós-1988. Na verdade, esse progresso era apenas aparente. Em vez de paradoxal, a relativização do direito de defesa passou a ser sintoma antecipado de um estado de coisas bastante preocupante: junto de uma estrutura jurídica formalmente democrática, enraizou-se uma cultura de negação dos direitos e de menosprezo das minorias.

Eis o que gostaria de destacar. Em alguma medida, a compreensão punitivista da esfera penal foi onde transpareceu, em primeiro lugar, a oposição aos princípios e valores democráticos. O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas brasileiras. Por isso, as palavras de Sepúlveda Pertence são rigorosamente verdadeiras. Lutar pelo direito de defesa é lutar pela democracia.

Essa nova percepção – em vez de exceção, sintoma – não deveria estranhar. As garantias penais – em concreto, o princípio da presunção de inocência, com seu corolário e garantidor, o direito de defesa – são a face mais imediata da dimensão contramajoritária do Estado Democrático de Direito. Elas fixam limites ao impulso do linchamento e do julgamento sumário, atuando num tema especialmente sensível do dia a dia da população: a segurança pública. Nada mais natural, portanto, que elas fossem as primeiras a sofrer resistência.

Não por acaso, políticos de corte populista, conservadores ou progressistas, permitem – ou mesmo promovem – retrocessos na legislação penal e processual penal. A trajetória da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), com seus acréscimos contínuos, é prova disso. Não por acaso, grupos políticos saudosistas da ditadura são os que mais desprezam as garantias penais e tentam implantar leis violadoras do direito de defesa.

Sem dúvida, os investigados e acusados nos atos do 8 de Janeiro têm, como todos os cidadãos, pleno direito de defesa. O Estado Democrático de Direito não opera com redução de cidadania. Mas isso não altera os fatos: ao longo dos últimos anos, os organizadores e apoiadores da intentona golpista atacaram não apenas a democracia, como também o direito de defesa e os princípios civilizatórios do Direito Penal. Esses dois ataques não são desvinculados. Integram a mesma bandeira autoritária que, sob a alegação de defesa da maioria, apregoa o desprezo do outro e a negação de sua cidadania.

Na próxima vez que for instado a relativizar alguma garantia penal, que o STF tenha presente essa realidade. Não convém contribuir com trajetórias de erosão civilizatória e institucional, que é por onde as democracias morrem.

P.S.: Lança-se hoje, em São Paulo, o livro A defesa: homenagem ao advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que é também uma justa e necessária homenagem ao exercício do direito de defesa.

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Poucos dias antes de seu falecimento, em julho deste ano, Sepúlveda Pertence, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1989 a 2007, referindo-se ao trabalho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), escreveu: “A luta pelo direito de defesa é e deve ser permanente, faz parte do processo civilizatório. Mas em alguns momentos, quando vemos surgir movimentos antidemocráticos aqui e ali, quando ideias de recrudescimento penal ganham corpo em detrimento da educação, da saúde e da convivência pacífica, essa luta se torna ainda mais necessária”. E concluiu: “Lutar pelas garantias individuais de pessoas que, para muitos, não teriam mais direito algum é, em essência, lutar pela democracia”.

Ao primeiro contato, a vinculação entre direito de defesa e regime democrático pode soar como um recurso retórico. Até porque o período pós-Constituição de 1988 – tempo de reinstauração do Estado Democrático de Direito, com o restabelecimento dos direitos e liberdades fundamentais – tem sido, no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, uma época de enfraquecimento da proteção do indivíduo ante o Estado. Sob o discurso de maior eficiência na repressão à criminalidade e à impunidade, operou-se significativa redução das garantias penais.

Não digo uma novidade. A própria fundação do IDDD, em 2002, foi uma reação às violações constantes do direito de defesa no País. Apesar de a Constituição de 1988 ter estabelecido princípios e direitos sobre o tema – como o contraditório, a presunção de inocência, a prova lícita e a assistência jurídica –, tais previsões mostraram-se insuficientes por si sós para assegurar a efetividade do direito de defesa.

A situação sempre me pareceu paradoxal. A Constituição de 1988 promoveu uma positiva, plural e democrática ressignificação axiológica de todo o ordenamento jurídico. No entanto, em matéria penal e processual penal, sua missão civilizatória mostrou-se pouco efetiva.

Pois bem, os embates e movimentos antidemocráticos dos últimos anos, que culminaram no 8 de Janeiro, fizeram-me olhar de outra forma para a relativização do direito de defesa e das garantias penais. A trajetória de desproteção do indivíduo ante o Estado na seara penal deixou de ser um contraponto ao que seria o progresso civilizatório pós-1988. Na verdade, esse progresso era apenas aparente. Em vez de paradoxal, a relativização do direito de defesa passou a ser sintoma antecipado de um estado de coisas bastante preocupante: junto de uma estrutura jurídica formalmente democrática, enraizou-se uma cultura de negação dos direitos e de menosprezo das minorias.

Eis o que gostaria de destacar. Em alguma medida, a compreensão punitivista da esfera penal foi onde transpareceu, em primeiro lugar, a oposição aos princípios e valores democráticos. O desrespeito ao direito de defesa precedeu, como parte de um mesmo fenômeno, os ataques às instituições democráticas brasileiras. Por isso, as palavras de Sepúlveda Pertence são rigorosamente verdadeiras. Lutar pelo direito de defesa é lutar pela democracia.

Essa nova percepção – em vez de exceção, sintoma – não deveria estranhar. As garantias penais – em concreto, o princípio da presunção de inocência, com seu corolário e garantidor, o direito de defesa – são a face mais imediata da dimensão contramajoritária do Estado Democrático de Direito. Elas fixam limites ao impulso do linchamento e do julgamento sumário, atuando num tema especialmente sensível do dia a dia da população: a segurança pública. Nada mais natural, portanto, que elas fossem as primeiras a sofrer resistência.

Não por acaso, políticos de corte populista, conservadores ou progressistas, permitem – ou mesmo promovem – retrocessos na legislação penal e processual penal. A trajetória da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/1990), com seus acréscimos contínuos, é prova disso. Não por acaso, grupos políticos saudosistas da ditadura são os que mais desprezam as garantias penais e tentam implantar leis violadoras do direito de defesa.

Sem dúvida, os investigados e acusados nos atos do 8 de Janeiro têm, como todos os cidadãos, pleno direito de defesa. O Estado Democrático de Direito não opera com redução de cidadania. Mas isso não altera os fatos: ao longo dos últimos anos, os organizadores e apoiadores da intentona golpista atacaram não apenas a democracia, como também o direito de defesa e os princípios civilizatórios do Direito Penal. Esses dois ataques não são desvinculados. Integram a mesma bandeira autoritária que, sob a alegação de defesa da maioria, apregoa o desprezo do outro e a negação de sua cidadania.

Na próxima vez que for instado a relativizar alguma garantia penal, que o STF tenha presente essa realidade. Não convém contribuir com trajetórias de erosão civilizatória e institucional, que é por onde as democracias morrem.

P.S.: Lança-se hoje, em São Paulo, o livro A defesa: homenagem ao advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que é também uma justa e necessária homenagem ao exercício do direito de defesa.

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