Antes do ultraje de 21 de agosto nas cercanias de Damasco, as presumíveis mil toneladas de armas químicas do ditador Bashar al-Assad vinham sendo uma irrelevância perto da artilharia e da aviação do regime. Elas respondem pela maioria das mais de 60 mil baixas infligidas à insurgência e à população (de um total de 110 mil) em dois anos e meio de guerra civil. A Síria acumulou substâncias venenosas para dissuadir Israel de um novo conflito. Na frente interna, teriam sido usadas 14 vezes, em escala limitada, antes para aterrorizar os moradores de áreas simpáticas aos rebeldes do que para dar resultados militares diretos. Inexplicavelmente, o padrão foi rompido no mês passado com o uso de gás sarin em volume tal que teria provocado, segundo os Estados Unidos, 1.429 mortes. Mudou, desde então, o olhar das potências ocidentais sobre a tragédia síria. Elas se habituaram às atrocidades cometidas pelas partes em luta e ao êxodo de 2 milhões de refugiados para a Turquia, Líbano, Jordânia e Iraque - na maior e mais ameaçadora crise do gênero no mundo. Mas o choque evidenciou a escassez de opções para deter a barbárie no segundo mais importante país árabe do Oriente Médio e revelou a inconsistência da política externa de Barack Obama. Descontada a retórica, falta-lhe um norte, nem que fosse o que levou o antecessor George W. Bush à catástrofe do Iraque. No caso sírio, sem um plano estratégico, Obama viu-se refém da ameaça improvisada a Assad, há um ano, de que terá cruzado uma "linha vermelha" se usar armamento químico. Quando a linha foi cruzada, por motivos ainda obscuros e em circunstâncias estranhas, Obama se emaranhou. Anunciou um ataque punitivo a distância - de duvidoso efeito sobre a relação de forças no território. Quando o Parlamento britânico desautorizou o primeiro-ministro David Cameron de participar da empresa, o americano teve o palpite infeliz de pedir o improvável aval do Capitólio para o mesmo fim. Ciente, enfim, de que a opinião pública americana não quer saber do vespeiro sírio, a Casa Branca, pela boca do secretário de Estado John Kerry, chegou a dizer, em desespero de causa, que a represália prevista seria "incrivelmente pequena". Pouco depois, soando como se tivesse acabado de ter a ideia, afirmou que a retaliação não se consumaria se Assad entregasse os seus estoques de gases. Mais do que depressa o presidente russo, Vladimir Putin, assumiu a paternidade da sugestão - e o comando da condução da crise. No último fim de semana, Washington e Moscou se acertaram numa reunião de chanceleres em Genebra. O acordo, a ser encampado pelo Conselho de Segurança da ONU, exsuda otimismo. Determina que, em uma semana, a Síria entregue um inventário completo de seu arsenal e localização, a serem conferidos, até novembro, pela ONU. Armas e equipamentos correlatos deverão estar eliminados em meados de 2014. (Como lembra o New York Times, os EUA e a Rússia ainda não terminaram de fazê-lo em casa, passados 15 anos da decisão.) Ontem, decerto para salvar a face, Kerry e seus colegas francês e britânico advertiram que haverá "consequências" se Assad não fizer a sua parte no cronograma. Ficou implícito que, se o fizer, o Ocidente não o aborrecerá pelo uso de armas convencionais contra seus inimigos. Ainda assim, o acordo de Genebra reforçou as especulações sobre uma saída negociada para o conflito sírio. Ao mesmo tempo, os EUA e o Irã, bastião de Assad, começaram a se falar. Em fins de agosto, esteve em Teerã, para um encontro com o chanceler iraniano Javad Zarif, o subsecretário da ONU para Assuntos Políticos, Jeffrey Feltman. Ele não só é americano, como foi secretário-assistente do Departamento de Estado. E ontem se revelou que Obama trocou mensagens com o novo presidente iraniano, Hasan Rowhani.É cedo, de toda forma, para prever os desdobramentos políticos do acordo russo-americano, cujo mérito inegável foi afastar o espectro do transbordamento do confronto sírio - ainda que ao preço de promover Putin e tranquilizar Assad.