Se o presidente do Chile, Gabriel Boric, é o aggiornamento da esquerda latino-americana, Lula da Silva é a obsolescenza. E, ao contrário do que pensa o demiurgo petista, não se trata de uma questão de idade – basta lembrar que o quase nonagenário esquerdista Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, declarou com todas as letras que o regime venezuelano, aquele tratado como democrático por Lula, “é uma ditadura, sim”.
Mas Lula não gosta de novidades. Prefere aferrar-se ao que conhece, à sua antediluviana visão de mundo, nutrindo profunda aversão àqueles que ousam contrariá-lo – especialmente quando esse atrevimento parte de um jovem, como o presidente chileno, de apenas 37 anos.
Neste ano, em duas ocasiões, Boric teve que lembrar ao presidente brasileiro que há limites morais para o apoio a regimes que violentam os princípios mais comezinhos da democracia, do direito e da civilização – aqueles que estão na essência do ideário da esquerda que superou o bolor marxista, caso da social-democracia europeia.
Em maio passado, durante um encontro de líderes sul-americanos convocado por Lula em Brasília, o chileno rejeitou a condescendência do anfitrião às ditaduras de Venezuela, Cuba e Nicarágua e refutou a versão do petista de que Caracas é vítima de uma “narrativa” antidemocrática. “Não é uma construção narrativa. É uma realidade, é séria, e tive a oportunidade de vê-la de perto nos rostos e na dor de centenas de milhares de venezuelanos”, afirmou Boric.
Nesta semana, na reunião de cúpula da União Europeia e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), o chileno isolou-se dos demais líderes da esquerda da América Latina ao considerar apropriada uma condenação à guerra da Rússia contra a Ucrânia na declaração final do encontro. Junto aos europeus, foi voto vencido.
A esta última intervenção de Boric, Lula reagiu de forma arrogante. Aos 77 anos, o petista tentou desqualificar Boric, 40 anos mais moço, não pelos argumentos, mas pela juventude do chileno. Lula disse que o “jovem” Boric estava “ansioso” em razão de sua “falta de costume” em participar de reuniões de cúpula como aquela.
Boric reagiu à grosseria de Lula com a elegância que falta ao petista, dizendo que não se sentiu ofendido e que nutre “respeito infinito e carinho” pelo presidente brasileiro. Talvez inadvertidamente, Boric tratou Lula como um símbolo avoengo ao qual se presta reverência apenas cerimonial, posto que ultrapassado.
Lula vive e respira ainda como se o mundo estivesse dividido entre patrões e empregados, ou entre imperialistas e colonizados, luta existencial que serve para justificar ditaduras como a da Venezuela ou as ações criminosas da Rússia de Vladimir Putin. O que há em comum entre esses países delinquentes, na visão lulopetista, é o fato de que se apresentam como vítimas do “Ocidente”, representação genérica dos Estados Unidos e da Europa ocidental. Como se ainda estivéssemos na guerra fria, Lula considera legítimo que a Rússia invada a Ucrânia ou que Nicolás Maduro encarcere seus opositores se isso for a resposta considerada adequada ao “imperialismo estadunidense”.
Segmentos da esquerda brasileira já foram capazes de reavaliar o papel da social-democracia nas últimas décadas. Rever erros e corrigir rumos é missão de qualquer partido político, principalmente entre os que conduziram e conduzem o Poder Executivo e estão presentes no Legislativo.
Já não existe mais espaço, portanto, para a esquerda repetir slogans caquéticos. O mundo não é mais a zona de confronto latente entre EUA e União Soviética. A pauta do bem-estar social e do combate às desigualdades deixou de ser matéria exclusiva de partidos esquerdistas. A vocação estatizante da economia não se sustenta em uma ordem mundial que requer indicadores elevados de produtividade e de competitividade das empresas e que exige, dos Estados, fundamentos fiscais e monetários sólidos. Lula, por sua senioridade, deveria ter se atualizado. É preciso, porém, que saiba: ainda há tempo, se tiver vontade.