As dúvidas acerca da política econômica que vai nortear as ações de Lula da Silva se refletem nas cotações do dólar, nos juros e nas ações das empresas negociadas em bolsa, mas o período de transição entre um governo que ainda não se foi e outro que, todavia, não assumiu conta com um importante ponto pacífico. É a primeira vez que o Banco Central (BC) não é uma fonte de incertezas, algo nada trivial considerando nosso histórico econômico e a bélica campanha presidencial.
O Banco Central obteve autonomia por meio de uma lei complementar sancionada em fevereiro de 2021, debatida por dois anos na Câmara e no Senado. Não foi a primeira tentativa de formalizar a independência da autoridade monetária. A lei que criou o BC, de 1964, concedia autonomia e mandatos fixos aos seus diretores, mas seus termos foram abandonados já na ditadura militar. Nos últimos 30 anos, muitas iniciativas que visavam ao resgate dessas condições foram apresentadas pelo Congresso, sem sucesso.
A nova lei garantiu mandatos de quatro anos ao presidente do BC e a seus diretores, em ciclos não coincidentes com a gestão do presidente da República, reconhecendo o papel do Banco Central como instituição de Estado e sua autoridade na busca de seu objetivo fundamental: o controle da inflação. Nesse sentido, foi bastante simbólico que o BC tenha iniciado a fase de aumento da Selic um mês após a sanção da lei – a título de comparação, nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed) o fez somente um ano depois.
Também é digno de nota que a trajetória ascendente da Selic tenha sido mantida até os atuais 13,75% ao ano, expondo o descompasso entre a prudente política monetária do BC e a eleitoreira política fiscal de Jair Bolsonaro. A inflação permanece fora da meta e enseja cautela, mas é fato que desacelerou. O próprio presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse que o comportamento dos preços em nível mundial parece ter atingido um pico e aparenta tendência de acomodação ou queda, embora em um nível alto.
Tal cenário abre espaço para que o BC possa fazer jus à autonomia que conquistou e cumprir todos os seus objetivos, entre eles o de zelar pela estabilidade e liquidez da economia, como reconhecem as leis de 1964 e de 2021. O lembrete foi dado por José Roberto Afonso, economista de formação ortodoxa e um dos pais do Plano Real. Em entrevista ao Estadão, ele disse que a tensão do mercado em relação ao futuro governo não apenas pode, como deve ser gerida pelo BC.
Segundo Afonso, o País dispõe de cerca de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal, considerando o volume de reservas cambiais e o colchão de liquidez do Tesouro Nacional. Esse estoque seria suficiente para honrar obrigações por quase um ano sem emitir novas dívidas, algo importante no momento em que o mercado precifica uma taxa de juros de 15% no início de 2023. Além das operações compromissadas e dos instrumentos cambiais que tem à mão, Afonso sugeriu que o BC poderia fazer uso de seu enorme poder de comunicação para acalmar os investidores, o que não se confunde com desafiá-los ou ignorar os riscos fiscais.
“Se o mercado está nervoso, se isso vai afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar”, disse Afonso. “Eu confio que ele (Roberto Campos Neto) vá atuar como presidente do BC”, disse o economista, sugerindo que o BC, agora autônomo, atua conforme parâmetros que independem do governo que indicou sua diretoria.
Como destacou Afonso, a tarefa de gerenciar expectativas do mercado ainda não é de Lula da Silva ou de seu futuro ministro, mas de um governo prestes a se encerrar e de um Banco Central que, pela primeira vez, permanecerá além dele. Dado o debate que a entrevista de Afonso gerou entre economistas nos últimos dias, e diante do contexto de uma autonomia recém-conquistada, a atuação do BC ganha ainda mais atenção e relevância.