Tradicionalmente, o termo “Centrão” carrega uma conotação pejorativa, indicando o grupo de congressistas ideologicamente invertebrados, em especial os deputados do “baixo clero”, que se organizam para se aproximar do governo de turno e angariar vantagens, verbas e cargos para seus redutos paroquiais. Em outras palavras, a encarnação do clientelismo, do corporativismo e do patrimonialismo.
Por outro lado, o Centrão foi fiador das principais reformas e políticas públicas da Nova República, seja em políticas sociais (como o Bolsa Família), sanitárias (SUS), ambientais (Código Florestal) ou educacionais (novo Fundeb). Seja por virtude ou necessidade, houve participação do Centrão mesmo em campos que afetam diretamente sua traficância fisiológica, como nas reformas eleitorais de 2017 que estabeleceram a cláusula de desempenho dos partidos e a extinção das coligações, ou até na área fiscal, como na aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, ou do teto de gastos, em 2016.
O aparente paradoxo se explica pela posição do Centrão no ecossistema pluripartidário do presidencialismo de coalizão brasileiro. Centrão é sinônimo de governismo. Se o governo é bom, o governismo será bom. Se o governo é ruim, o governismo será ruim. Independentemente do mérito de suas agendas políticas, os governos FHC, Lula e Temer têm em comum o fato de terem desenhado propostas concretas e viáveis de políticas públicas que serviram de base para negociações no Congresso. Em contraposição, o voluntarismo de Fernando Collor e Dilma Rousseff inviabilizou seus governos a ponto de serem encerrados da maneira mais traumática: o impeachment.
Ou seja: o Centrão é o que o governo fizer dele. No entanto, se o Executivo é fraco, a equação se inverte e o governo passa a ser o que o Centrão fizer dele. Essa é a especificidade do governo Bolsonaro.
A trajetória de mais de duas décadas do deputado Jair Bolsonaro foi a de uma figura em parte típica, em parte exótica, do Centrão, a serviço dos interesses corporativistas das Forças Armadas e policiais. Pelo menos desde as manifestações de 2013, Bolsonaro incorporou ostensivamente uma retórica radical, capturando pedaços das pautas conservadoras para transformá-los em armas da chamada “guerra cultural”. Já posicionado como expoente do reacionarismo, Bolsonaro e seus correligionários utilizaram habilmente (e, ao que tudo indica, criminosamente) as redes sociais para canalizar a indignação galvanizada pela Lava Jato contra a corrupção e o PT, conquistando o Planalto em 2018. Neste momento, o Centrão era um alvo conveniente da militância bolsonarista como a “velha política”.
Mas o deserto de propostas do governo, sua incompetência administrativa (agravada na pandemia) e sobretudo as denúncias de corrupção contra a prole Bolsonaro, hoje acuada pela Justiça, levaram à inversão que o País testemunha hoje. Bolsonaro continua a agitar as bandeiras de sua guerra cultural e alvejar os governadores ou o STF como seus bodes expiatórios. Mas seus guerrilheiros mais estridentes foram espirrados do governo pelo Centrão, que dominou as principais pastas, capturou o Orçamento e passou a ditar o que se poderia chamar de uma agenda de governo. Em troca, Bolsonaro é blindado de um processo de impeachment (e, logo, da Justiça) e pode se entregar à sua campanha eleitoral.
A subversão do atual Executivo em fiador do fisiologismo do Centrão é irreversível. O melhor que as forças comprometidas com o bem comum, especialmente no Senado, podem fazer é uma política de contenção de danos, preservando os alicerces republicanos ora sob ataque (como os mecanismos de responsabilidade fiscal e as reformas eleitorais), que garantirão a sustentabilidade do Estado e a governabilidade da próxima gestão. A depender da escolha dos eleitores, o próximo governante poderá extrair do Centrão o que de melhor ele pode dar: o governismo a serviço das reformas que colocarão o País no rumo do desenvolvimento sustentável.