A democracia mais longeva, rica e poderosa do mundo está doente. Segundo pesquisa do Pew Research, só 4% dos norte-americanos pensam que seu sistema político está funcionando muito bem e 63% têm pouca ou nenhuma confiança em seu futuro. Quando se pergunta sobre sentimentos a respeito da política, as respostas mais comuns são exaustão (65%) e raiva (55%). Em contraste, só 10% se sentem esperançosos e 4%, animados. Conclamados a sintetizar suas impressões sobre o sistema, só 2% utilizaram termos positivos. Quase 80% empregaram palavras negativas, como “divisivo” e “corrupto”. A maioria não foi capaz de identificar qualquer força na política.
A insatisfação é consensual à esquerda e à direita. Em tudo mais, os americanos estão mais divididos do que no passado. Mais do que a mera divergência, a hostilidade escalou. Desde 2016, a proporção dos partidários que consideram o outro lado “imoral” saltou entre os republicanos de 47% para 72% e entre os democratas, de 35% para 63%, padrão similar para outros estereótipos negativos, como “desonesto”, “intransigente”, “burro” ou “preguiçoso”.
Paradoxalmente, essa sociedade cada vez mais polarizada é altamente crítica da polarização. Quando se avalia qual seria o maior problema do sistema político, o segundo mais citado – só atrás dos próprios políticos (31%) – foi a polarização ou falta de cooperação partidária (22%). A parcela dos que desaprovam os dois maiores partidos do país (3 em 10) é a maior em 30 anos. Quase 9 em 10 dizem que uma boa descrição da política é: “republicanos e democratas estão mais focados em combater uns aos outros que em resolver problemas”.
Tanto quanto a escalada da polarização é sombria, a insatisfação com ela é promissora. A política é a arte de pactuar consensos sobre direitos e deveres comuns e a alocação dos recursos públicos. Mas, quando um lado desumaniza o outro e se sente desumanizado pelo outro, esse esforço é minado na raiz. Em deliberações sobre quem tem direito a “que” ou a “quanto”, as pessoas podem separar as diferenças, negociar e se sentir razoavelmente satisfeitas. Mas, numa política que reforça identidades existenciais, as discussões versam sobre “quem” elas são. Quando é o modo de vida que está em jogo, o outro lado é visto não só como equivocado, mas perigoso, e as concessões são percebidas como traição. A polarização oblitera a responsividade da política, o que leva ao desencanto com ela, o que leva à apatia ou ao radicalismo. Dificilmente o leitor brasileiro não se reconhecerá preso nesse círculo vicioso.
Para desarmá-lo, é preciso reconhecer sua dinâmica. A política identitária, iniciada pela esquerda com a motivação legítima de incluir minorias, logo degenerou entre os radicais na obsessão ilegítima por “desconstruir” e humilhar maiorias. Por sua vez, a reação legítima dos conservadores a essa truculência degenerou, entre os radicais, em uma truculência redobrada. Hoje as táticas autoritárias se tornaram mais agudas na direita reacionária. Nada é mais significativo que um presidente encorajando simpatizantes a invadir o Congresso para impedir que representantes do povo legitimassem a vontade do povo expressa nas urnas.
Desconstruir a polarização é tarefa que exigirá dos partidários à esquerda e à direita reconhecer sua parcela de responsabilidade. Os conservadores têm uma especial missão de se mobilizar para derrotar os antidemocratas nas urnas. Mas os progressistas precisam ter claro que, toda vez que desqualificam pessoas por sua pertença a um grupo (homens, brancos, héteros, cristãos, etc.), só ampliam o estoque de recrutamento dos reacionários.
Não que conservadores e progressistas devam abrir mão de suas divergências sobre a ordem jurídica ou o papel do Estado. Mas, para que possam disputar votos às suas posições e, a partir deles, negociar a concretização possível de seus ideais, uma precondição é neutralizar os radicais de ambos os lados, reduzindo incentivos para que eleitores que se sentem “excluídos” ou “deixados para trás” ingressem em suas aventuras autoritárias.