Há anos o Estado do Rio de Janeiro lidera o ranking de inquéritos por crimes eleitorais. É um sintoma da degradação da política fluminense que já resultou na prisão de vários líderes regionais. Mas nos últimos dois anos, como mostrou reportagem do Estado, verificou-se uma mudança de padrão: o aumento de crimes eleitorais associados à lavagem de dinheiro, corrupção, peculato, tráfico de influência e organização criminosa. É mais um indício da infiltração do crime organizado, especialmente das milícias, na esfera política.
Entre 2013 e 2020 foram abertas 3.487 investigações no Rio. Isso significa 28,1 inquéritos por grupo de 100 mil eleitores. A título de exemplo, em São Paulo são 7,3; em Minas, 6,8; e na Bahia, 5,1. “O número alto me parece ser em função dessa força, dessa atuação de um Estado paralelo do crime organizado, que acaba tendo uma repercussão no processo eleitoral que vem desde 2008”, disse o juiz Luiz Márcio Pereira, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio.
As milícias nasceram como grupos paramilitares de policiais da reserva ou da ativa que extorquiam as comunidades carentes, atemorizadas pelo tráfico, em troca de segurança. Ante a omissão do Estado, os negócios se expandiram para a agiotagem, ofertas de serviços clandestinos, grilagem, construção civil, contrabando e tráfico de armas e drogas. Segundo o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, 55,7% do território da capital é controlado pelas milícias; 15,4%, pelo narcotráfico; e 25,2% estão sob disputa.
“Como quem controla o território controla o voto, as milícias e o crime organizado passaram a colocar nos Legislativos municipais e estadual seus representantes, formando as suas bancadas. Estas, por sua vez, passaram a indicar representantes seus ou aliados para cargos no Executivo na área de segurança pública, numa verdadeira metástase”, disse em artigo no Estado o ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann. “Paulatinamente, outras partes do Estado são capturadas – forças de segurança, órgãos de controle, Judiciário, Ministério Público – e forma-se uma associação criminosa baseada na mútua proteção e no rateio dos ganhos do crime.”
Em 2020, por exemplo, só dois candidatos a vereador foram autorizados pelas milícias a fazer campanha nas favelas de Rio das Pedras e Muzema: Marcello Siciliano (Progressistas), investigado por ligações com as milícias que chegou a ser apontado como um dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco, e Marcelo Diniz (Solidariedade), suspeito de extorquir comerciantes e moradores de Muzema. Na cidade de Duque de Caxias, Danilo Francisco da Silva (MDB), suspeito de ser o chefe de um grupo de extermínio, foi o oitavo candidato mais bem votado. O vereador Jairinho, acusado de torturar até a morte o menino Henry, de 4 anos, é herdeiro eleitoral do pai, o Coronel Jairo, que na CPI das Milícias de 2008 foi apontado como um dos chefes da Liga da Justiça, a maior milícia do Rio à época.
Mas seria um erro isolar o fenômeno ao Rio. O Estado fluminense representa apenas o estágio mais avançado de uma metástase. Em todo o Brasil o narcotráfico se expande a olhos vistos e em pelo menos 23 dos 27 Estados da Federação há atividades das milícias. Segundo um levantamento do Globo, em 2020, 31 candidatos a prefeituras e Câmaras de vereadores eram de alguma forma suspeitos de envolvimento com o crime organizado. Destes, 7 se elegeram e 12 integram as listas de suplentes.
Como se sabe, as suspeitas de envolvimento com milicianos chegam ao próprio poder federal. O senador Flavio Bolsonaro (Republicanos) é acusado de se beneficiar de um esquema de “rachadinha” quando deputado estadual, coordenado pelo ex-PM Fabrício Queiroz, por sua vez suspeito de colaborar com Adriano da Nóbrega, chefão da milícia fluminense morto no ano passado. Em 2008, o então deputado Jair Bolsonaro chegou a dizer sobre as milícias que “o governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes, e talvez, no futuro, legalizá-las”. Tudo indica que este futuro está cada vez mais presente.