À parte as questões teológicas e morais envolvidas, a declaração Fiducia supplicans, da Igreja Católica, sobre a possibilidade de padres darem uma bênção a pessoas em uniões que, aos olhos da doutrina católica, são irregulares (como as segundas uniões e as uniões homoafetivas) pode ser vista como um bom exemplo de convivência respeitosa e pacífica. Recentemente, a Santa Sé esclareceu que o documento aprovado pelo papa Francisco não modifica a visão da Igreja sobre o casamento, que, segundo sua compreensão, continua sendo unicamente a união entre um homem e uma mulher para a vida inteira. Mas é justamente esse aspecto, que talvez tenha frustrado a expectativa de muitas pessoas por alterações mais profundas na doutrina católica, que pode trazer luzes sobre a convivência e o respeito numa sociedade plural.
Não é preciso que todos pensem da mesma forma. Não é necessário que todos tenham a mesma compreensão a respeito de um tema moral ou social. Tudo isso está no âmbito da esfera individual, que um Estado comprometido com as liberdades tem o dever de respeitar e proteger. Não há nenhuma necessidade, seja de ordem pública seja de ordem privada, que todos os indivíduos tenham a mesma avaliação ética sobre determinado comportamento, atitude ou compreensão de mundo. Isso faz parte do pluralismo, próprio de uma sociedade livre.
Precisamente porque existe essa amplíssima liberdade de pensamento e de opinião, deve haver um profundo respeito por todas as pessoas, sejam quais forem suas ideias, atitudes e modos de vida. Nenhuma opinião moral, seja de um indivíduo ou de um grupo, é apta a restringir a liberdade dos outros cidadãos. Na República, o único limite é a lei. A Constituição de 1988 estabelece, em seu art. 5.º, II, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Aqui está, por assim dizer, o grande ensinamento da declaração Fiducia supplicans para todas as pessoas, seja qual for o seu credo ou orientação filosófica. Não é preciso aplaudir as atitudes do outro, não é preciso concordar com suas opiniões políticas, não é preciso ter sua mesma visão de mundo, para acolhê-lo, para respeitá-lo, para reconhecer seus direitos, para tratá-lo como pessoa. A disparidade de pensamento ou de comportamento não é motivo para excluir nem para discriminar ninguém.
Talvez seja esse um dos principais desafios dos tempos atuais. As diferenças políticas e ideológicas passaram a ser vistas como causa de exclusão do outro ou, ao menos, como motivo para não dialogar, que é também uma forma de desprezo. No entanto, essa atitude inviabiliza o desenvolvimento, sob qualquer âmbito, da sociedade.
Na política, essa realidade é muito evidente. A não abertura ao diálogo com quem pensa de forma diferente inviabiliza encontrar os caminhos possíveis para o enfrentamento dos problemas nacionais. Implementar políticas públicas sempre demanda conversa e negociação. O mesmo se pode dizer de outras áreas, como a economia. Um ambiente de negócios saudável exige confiança e respeito, acima de eventuais diferenças políticas, filosóficas ou morais. Um tecido social esgarçado, no qual o outro é visto como inferior aos do próprio grupo social, é profundamente disfuncional, além de contrário ao princípio fundamental do Estado Democrático de Direito: o da dignidade humana.
Como se vê, há toda uma grande trajetória de civilidade a ser percorrida. Respeito ao outro não significa homogeneidade ou pensamento único. Cada um pode ter livremente suas opiniões, suas concepções sobre a vida e a sociedade. Não cabe coagir ninguém a pensar de determinada maneira. E, precisamente por isso, todos merecem igualmente respeito, todos merecem que seus direitos sejam respeitados.
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, afirma a Constituição no seu art. 5.º. O País avançaria muito se essa igualdade, mais do que um princípio formal, fosse prática diária, tanto pelo Estado, em todas suas esferas, como pelos cidadãos.