Há algo de podre na democracia brasileira. O mau cheiro não é de agora. Lá se vão mais de 10 anos desde as Jornadas de Junho de 2013.
Nos últimos 21 anos, o PT governou por 15. Mesmo após os ardis antidemocráticos de compra de parlamentares no primeiro mandato de Lula da Silva, o partido conquistou mais três mandatos consecutivos, o suficiente para engendrar outro esquema de cooptação da máquina pública a serviço de seu projeto de poder, promover algumas das ditaduras mais sangrentas do mundo e afundar a economia na pior crise dos tempos modernos.
Então surgiu o fenômeno Jair Bolsonaro. Tão grande foi a indignação popular com a crise moral da República, que o deputado do baixíssimo clero, sob sua fúria antipetista, conseguiu magnetizar os ânimos antissistema. Mas tão incompetente e truculento foi o seu governo, que o PT retornou ao poder propagandeando-se como “salvador da democracia”.
Nas eleições deste ano estava contratada uma reedição dessa polarização nas praças municipais. Mas, desafiando o Axioma de Tiririca, a coisa ficou pior. São Paulo é exemplar. Segundo as últimas pesquisas, o aventureiro Pablo Marçal foi alçado ao patamar de “terceira força”, em condições de igualdade com o candidato do PT, Guilherme Boulos, e com o candidato de Bolsonaro, o incumbente Ricardo Nunes.
Marçal é o produto de uma espécie de “seleção natural” da extrema direita. Dizendo barbaridades que nem Bolsonaro diria, Marçal cativa o eleitorado bolsonarista à revelia de Bolsonaro, como se demonstrasse que o ex-presidente não é hegemônico na direita antidemocrática.
Mas o espectro do embate entre direita e esquerda é só parte do fenômeno, talvez a menos relevante. Se Bolsonaro usou a descrença na política para alimentar seu discurso contra a esquerda, Marçal – ao contrário de Bolsonaro, um corpo genuinamente estranho ao sistema – usa a impopularidade da esquerda como pretexto para atacar seu verdadeiro alvo: a política.
Goste-se ou não do conteúdo lulopetista, a rigor o PT é, na forma, o único partido político brasileiro digno desse nome, com um programa claro e uma militância organizada em escala nacional. Bolsonaro é um político sem partido, ou de muitos partidos, mas também tem uma militância organizada e algo que se pode chamar de ideologia: a nostalgia da ditadura, o ressentimento com as minorias, a luta contra a esquerda. No poder, um e outro se “institucionalizaram”, por assim dizer, ainda que na forma de conchavos com os potentados de Brasília e soluções de compromisso com oligarquias regionais. É uma política bruta, divisiva, cínica, autoritária, mas, ainda assim, política.
Já o voto de confiança em Marçal é um voto de desconfiança na própria política – um tiro de bazuca contra o establishment, um voto de negação, de ruptura, de vandalismo.
Tão profundo desencanto não acontece no vácuo e não é obra de um dia. Com todos os seus méritos, a Constituição “cidadã” não entregou suas promessas de cidadania. Os serviços públicos funcionam mal. A desigualdade é gritante. As classes dirigentes estão entupidas de privilégios. Os partidos são meros balcões de negócios. O Judiciário se intromete na arena política, ora confrontando Poderes, ora se colocando como uma espécie de Poder tutelar.
Não se pode abafar o grito de desespero nem menosprezar a revolta do eleitorado. Há algo de podre na democracia brasileira. Mas não se reformará a democracia destruindo a democracia. Diante de uma manifestação tão formidável de antipolítica, é preciso valorizar ainda mais a política.
Uma candidatura niilista como a de Marçal não levará, por definição, a nada. Mas fugir dos debates, como fizeram os candidatos de São Paulo, foi a pior resposta possível. O vandalismo que Marçal representa não surgiu da noite para o dia. Para enfrentá-lo, é preciso que o radicalismo do amor à política se imponha ao radicalismo dos que odeiam a política. Há algo maior em jogo que a disputa de ideologias. É a sanidade da democracia.