Como se esperaria do “pilar” da estabilidade política da Europa e “motor” de sua economia, a Alemanha sempre cultivou a fama de um establishment político austero, competente, previsível – ou, para dizer com um grão de sal, tedioso. Não mais. O novo “homem doente da Europa”, expressão usada desde o século passado para qualificar países europeus em crise profunda, já virou um chavão entre articulistas. A economia está há seis anos estagnada. O único setor que cresce é o Estado. As divergências entre o hemisfério ocidental e o oriental se aprofundam. Partidos párias de extrema direita e mais recentemente de extrema esquerda ganham mais votos a cada eleição. A próxima foi incomumente antecipada em sete meses, para fevereiro, após a coalizão insólita entre sociais-democratas, verdes e liberais ruir num clima de acrimônia.
A votação do Parlamento que sacramentou a desconfiança no premiê social-democrata Olaf Scholz foi sintomática. Scholz sugeriu que os liberais não têm “decência e maturidade”, acusando-os de “sabotagem”. O líder do Partido Liberal, Christian Lindner, demitido do Ministério das Finanças, comparou Scholz a um Rei Momo, concluindo que é legal “jogar doces” para o povo no carnaval, mas “não é assim que se governa a Alemanha”.
O estopim foi um pacote proposto pelos liberais de políticas pró-mercado – redução de impostos, de gastos sociais, de regulamentos ambientais – para impulsionar o lado da oferta econômica. Scholz retaliou demandando mais gastos e subsídios à custa de um relaxamento das regras fiscais.
Assim como na França, o outro pilar europeu, o mal-estar econômico está na raiz do tumulto político na Alemanha. A contraparte do voluntarismo ambiental progressista foi o negacionismo econômico. Políticas climáticas quiméricas catapultaram os preços de energia. O choque de realidade veio com uma decisão da Corte Constitucional obrigando o governo a incluir no arcabouço fiscal os subsídios verdes. A conta já não fechava antes, agora ainda menos. Com seu modelo de negócios defasado, a Alemanha não consegue bancar todas as demandas de benefícios sociais, políticas ambientais e defesa. As tarifas prometidas pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, podem apertar mais o torniquete.
O idealismo (para não dizer pensamento mágico) progressista é causa imediata da crise. Mas o legado da premiê anterior, Angela Merkel, da Democracia Cristã, de centro-direita, envelheceu mal. Erros cometidos – e não admitidos – nos seus 16 anos de poder – como a complacência com o autocrata russo Vladimir Putin, a dependência da energia da Rússia e do mercado chinês para exportação de manufaturados, o descarte das usinas nucleares e o acolhimento generoso de refugiados islâmicos (moralmente louvável, mas politicamente temerário) – cobram seu preço.
O líder da Democracia Cristã, Friedrich Merz, posicionado para ser o próximo premiê, elegeu o crescimento econômico como prioridade e move o partido à direita de Merkel. Ele propõe reformas no sistema social e cortes de impostos corporativos para impulsionar o emprego e a produtividade, e mais disciplina nas políticas imigratórias. Economia e imigração são as duas principais preocupações dos eleitores.
Merz, um industrial, tem fama de impaciente. A impaciência será útil para despertar a Alemanha de seu torpor econômico. Mas pode ser um passivo político num sistema partidário fragmentado. Com sorte, Merz reeditará a tradicional coalizão com os sociais-democratas. Mas, se as duas siglas não formarem maioria, pode ser obrigado a compor mais uma coalizão heteróclita e disfuncional com os verdes. Os liberais podem nem ultrapassar a cláusula de barreira. A Alternativa para a Alemanha, de extrema direita, deve ser a segunda força no Parlamento. Nenhum partido tradicional fará negócios com eles, mas o “cordão sanitário” é uma faca de dois gumes: por um lado, preserva a reputação de moderação da política alemã; por outro, permite que os extremistas, sem ter de responder pelo governo, sejam um repositório das frustrações e fantasias do eleitorado.
O establishment terá mais uma chance de recobrar a confiança da população e a liderança da União Europeia. Mas pode ser a última.