Após a péssima recepção do pacote fiscal, o governo passou a investir na construção de uma narrativa muito conveniente para si mesmo. Para a equipe econômica, o mercado não compreendeu o quanto o ajuste é austero, sobretudo para um governo de esquerda cuja maior preocupação é a área social. Sua apresentação, portanto, seria uma vitória do ministro Fernando Haddad, que conseguiu convencer Lula da Silva a fazer o que era o certo a despeito da resistência da maioria do governo.
Prova do alegado vigor do ajuste fiscal é que a Câmara por pouco não aprovou o regime de urgência para acelerar a tramitação dos projetos do pacote por discordar das mudanças nas regras de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio pago a idosos vulneráveis e pessoas com deficiência. Além do rechaço da esquerda, lideranças do Centrão também manifestaram receio sobre o impacto econômico da medida vis-à-vis o desgaste político que ela poderia proporcionar.
Essa versão serve aos propósitos do governo, mas não resiste aos fatos. Sob o ponto de vista político, a má vontade da Câmara com o pacote fiscal nada tem a ver com a pretensa dureza das medidas, mas com a decisão do ministro Flávio Dino, referendada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), de impor regras que dificultam o pagamento de emendas parlamentares.
Aprovar esses projetos seria um passeio caso Dino tivesse se contentado com a proposta que deputados e senadores aprovaram para manter o esquema das emendas como estava. Mas o jogo ainda não acabou e, até o fim do ano, essas e outras propostas pendentes de votação pelo Congresso poderão ser aprovadas a toque de caixa, a depender de negociações que nada têm a ver com o cerne dos projetos.
Sob o ponto de vista econômico, contestar o teor das propostas é ainda mais fácil. Como destacou o pesquisador associado do Insper Marcos Mendes em entrevista ao Estadão, o Ministério da Fazenda nem sequer apresentou as notas técnicas que deram base à anunciada economia com cada projeto, o que enseja dúvidas sobre as premissas utilizadas nas contas. E, a despeito de o arcabouço fiscal ser incapaz de estabilizar a dívida pública, o governo tem tido dificuldade em cumpri-lo à risca.
Aliados alegam haver implicância dos investidores com Lula da Silva. Enquanto eles cobravam mais vigor do pacote fiscal, o IBGE divulgou que o PIB cresceu 0,9% ante o segundo trimestre e 4% na comparação com o terceiro trimestre do ano passado, e que a quantidade de brasileiros abaixo da linha da pobreza caiu de 67,7 milhões para 59 milhões, o menor número desde 2012. São, por óbvio, indicadores a serem celebrados, mas que falam do passado, e não do futuro, horizonte que pauta as análises do mercado. Uma análise mais justa demonstraria que o ano em que a pobreza recuou a níveis historicamente baixos coincidiu com o período em que o mercado apostou todas as suas fichas no País.
Na última sessão de 2023, por exemplo, o Ibovespa fechou o ano em alta de mais de 20%, aos 134 mil pontos, melhor desempenho anual desde 2019; o dólar foi cotado a R$ 4,8322, queda de 8,08% em relação ao fim do ano anterior, quando estava em R$ 5,2780. Àquela época, segundo o Boletim Focus, os investidores acreditavam que a Selic estaria em 9%, o dólar em R$ 5,00 e o IPCA em 3,91% no fim deste ano. Se o mercado errou, não foi por pessimismo. Hoje, a Selic está em 11,25%; a moeda norte-americana, em mais de R$ 6,00; e a inflação, em 4,76% no acumulado em 12 meses até outubro.
Se o governo tem genuíno interesse em melhorar a vida dos mais pobres, deveria fazer sua parte para manter a inflação na meta, o que exigiria rigor com o gasto público e programas sociais focalizados naqueles que mais precisam.
Mas, em vez de mostrar comprometimento com a responsabilidade fiscal, o Executivo optou por preservar o arcabouço fiscal com uma pinguela que lhe permita chegar com chances eleitorais até 2026, único panorama a guiar as ações de Lula da Silva.
O mercado, portanto, entendeu muito bem o significado do pacote e se protegerá da instabilidade gerada pelo governo com títulos públicos do próprio governo, que já rendem mais de 14%. Enquanto isso, os pobres ficarão à mercê da inflação.