Há uma crescente e mais que compreensível preocupação com a possibilidade de ruptura da ordem constitucional. De forma insistente, o presidente Jair Bolsonaro vem ameaçando e confrontando o sistema eleitoral e o Poder Judiciário. É um cenário inédito na ordem constitucional de 1988, o que desperta naturalmente grande apreensão.
De toda forma, o perigo não está apenas no futuro. Agora mesmo, não se sabe se Jair Bolsonaro cumprirá suas ameaças de golpe, se o bolsonarismo vai tumultuar as eleições (que até agora sempre foram pacíficas), se haverá uma escalada de violência contras as instituições e tantas outras questões importantes sobre o que ocorrerá com o País até o fim do ano. O problema é mais próximo. Não é mera possibilidade: a corrosão já está ocorrendo, como se viu nas últimas semanas.
A gravidade da situação – essa dimensão de realidade, e não de mero risco futuro – ficou explícita não tanto em virtude do comportamento de Jair Bolsonaro, porque, a rigor, ninguém jamais teve dúvida sobre a falta de compromisso do presidente com a Constituição de 1988 e ele nunca deu nenhum motivo para que se pensasse o contrário. Quem escancarou ao País a atual miséria dos fundamentos do Estado Democrático de Direito foi o Congresso, especialmente a oposição.
A constrangedora novidade, se é que se pode chamar assim, é a atuação recente do Legislativo. Todo o Senado, com exceção do senador José Serra (PSDB-SP), apoiou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, que violenta a própria Constituição e subverte, às vésperas das eleições, as regras do jogo eleitoral. Encaminhada à Câmara, essa PEC tem sido objeto de uma tramitação relâmpago, sem estudo e sem debate. Nesta semana, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fez uma manobra inconstitucional – não instalou a CPI do MEC, apesar de os requisitos estarem preenchidos – e ainda alegou contar com o apoio dos líderes dos partidos.
Essa é a grande afronta ao regime democrático brasileiro: a normalização do desrespeito à Constituição. A oposição, que deveria ser resistência contra o autoritarismo de Jair Bolsonaro, tem feito um duvidoso e perigosíssimo cálculo eleitoral, em vez de defender com valentia a Constituição. Há uma tolerância com o intolerável. A tramitação da PEC 1/2022 escancarou um problema atual muito grave. Não é apenas o bolsonarismo que, para tentar permanecer no poder, faz troça da Constituição. Os partidos de oposição também estão operando dentro de uma lógica antirrepublicana e antidemocrática.
A lamentável omissão dos partidos de oposição não desculpa, por óbvio, a gravidade do comportamento de Jair Bolsonaro. Desde 1988, nenhum presidente da República usou o cargo para atacar as eleições, corroer a confiança da população no sistema eleitoral e tentar envolver as Forças Armadas em tramoias inconstitucionais. O que faz Jair Bolsonaro é rigorosamente inédito, a merecer severa aplicação da lei penal.
No entanto, precisamente pelo descalabro que é a atuação de Jair Bolsonaro, a omissão e a tolerância da oposição são ainda mais graves, ainda mais incompreensíveis. Diante desse cenário que causa tanta perplexidade, é preciso mencionar algumas verdades incômodas. A CPI do MEC não traz riscos eleitorais apenas para Jair Bolsonaro, pois as suspeitas de mau uso de dinheiro público na educação envolvem diretamente pessoas ligadas ao Centrão. O orçamento secreto não beneficia apenas aliados públicos do bolsonarismo – sabe-se que parlamentares da oposição também foram agraciados com verbas para seus redutos eleitorais sem transparência, sem critérios objetivos e sem controle. Por fim, não são apenas os bolsonaristas que apoiaram e continuam apoiando o modo como o deputado Arthur Lira (PP-AL) atropela ritos no exercício da presidência da Câmara.
Não basta criticar o bolsonarismo. Não basta preocupar-se com o futuro. Já hoje, muitas lideranças políticas de outras cores partidárias estão, com suas ações e suas omissões, contribuindo para enfraquecer a Constituição. É assim que começa a temida ruptura democrática.