Passado apenas um século da vaga totalitária que desafiou a democracia e o liberalismo e resultou na 2.ª Guerra Mundial, os valores que definem o Ocidente voltam a ser desafiados de maneira frontal.
Sob a liderança da China, formou-se o chamado “eixo da revolta” contra os valores ocidentais. Esse agrupamento, que tem na Rússia, no Irã e na Coreia do Norte os principais associados, vem ganhando adeptos e simpatias ao redor do mundo, exatamente por desafiar um status quo, liderado pelos Estados Unidos e pela Europa, visto como intrinsecamente desigual e injusto.
O Brasil governado pelo PT é um dos países que expressaram admiração pelo “eixo da revolta”, seja por meio de uma política externa que dá razão a agressores quando o agredido é ocidental, seja pelo apreço demonstrado pela liderança do PT à “democracia efetiva” da China. O Irã, que por sua vez lidera o “eixo da resistência anti-imperialista”, integrado por um seleto grupo de entidades terroristas do Oriente Médio, foi calorosamente aceito no Brics, o bloco dominado pela China, do qual o Brasil faz parte. Toda essa miscelânea de ressentidos com o Ocidente, numa reedição do Terceiro Mundo dos tempos da guerra fria, ganhou o nome fantasia de “Sul Global”.
Enquanto isso, a extrema direita também se organiza de maneira global contra os valores ocidentais. Na mais recente Conferência de Ação Política Conservadora – Cpac, principal palco de líderes e formuladores do ultraconservadorismo –, realizada na Hungria, novos ataques foram disparados contra os alvos preferenciais dessa turma: a imprensa, o Judiciário, os imigrantes, os intelectuais, as minorias em geral e, sobretudo, o “Ocidente liberal”. O ex-presidente americano Donald Trump, líder inconteste dos reacionários, mandou um vídeo no qual parabeniza os “patriotas húngaros” que estão “na vanguarda da batalha para resgatar a civilização ocidental”.
A “civilização ocidental” nomeada por Trump inclui herdeiros do franquismo espanhol, argentinos devotos da motosserra de Javier Milei, os Bolsonaros e os representantes de partidos xenófobos da Itália, Polônia, França e Alemanha, todos em concertação articulada para disputar eleições. Para o anfitrião, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, vencer as eleições significará “colocar fim à inglória era que o Ocidente atravessa”. Ou seja, a vitória eleitoral é vista como uma espécie de chancela para o projeto de destruição da mesma democracia que a ensejou.
Essa destruição se dá por meio da desmoralização dos valores mais caros à democracia, como, por exemplo, a liberdade de expressão, meramente utilitária para essa gente saudosa de ferozes ditaduras. Na prática, eles defendem não o Ocidente como berço da democracia liberal, da emancipação do indivíduo e dos direitos humanos, acima de nacionalidades, credos e fronteiras, e sim um “Ocidente” ultranacionalista, anti-iluminista e fundamentalista – e não há nada menos democrático e liberal do que isso.
Como quase todo problema visto com olhos teocráticos, sua solução passa por um “messias”. Trump seria o salvador do Ocidente, assim como Orbán enxerga a Hungria como “uma ilha que desafia” os progressistas europeus, e Bolsonaro se via como um “messias” que salvaria o Brasil de um sistema carcomido pela política tradicional, pelo esquerdismo e pelo “globalismo”. Para cada um dos extremistas presentes no Cpac, seus líderes livrarão o Ocidente da “era inglória” do liberalismo. Esses iliberais na verdade querem o “Ocidente” que enfrentou os infiéis nas Cruzadas, isto é, aquele que precedeu o iluminismo e as grandes revoluções políticas que forjaram a ideia democrática contemporânea.
Assim como no século passado o nazi-fascismo e o stalinismo tinham como meta implodir a democracia liberal como ideia, o “eixo da revolta” e os direitistas “iliberais” de hoje lutam para desacreditar o Ocidente democrático e cosmopolita. Os valores liberais sobreviveram às guerras do século 20, ao custo de milhões de mortos, mas, como se vê, o risco de que venham a perecer está longe de ter desaparecido.