O que a crise peruana ensina


A enésima troca turbulenta de comando no Peru mostra o que acontece com o sistema político de um país quando a luta anticorrupção canaliza todas as frustrações nacionais

Por Notas & Informações

Na manhã de quarta-feira, quando o Congresso peruano votaria uma terceira moção de impeachment de Pedro Castillo, o editorial do jornal La República clamava: Renuncie, presidente. Uma alternativa em tese sensata, mas naquele ponto inviável, seria Castillo negociar concessões com lideranças parlamentares, formando novas bases. Outra, mais ousada, seria convocar eleições gerais. Mas ele optou pela mais desesperada e fantástica: dissolver o Congresso e governar por decreto, anunciando uma constituinte e a reorganização do Judiciário. Ministros e aliados debandaram. O Tribunal Constitucional, o Ministério Público e o Exército condenaram a intentona. Em duas horas, Castillo estava preso e o Congresso empossou a vice-presidente Dina Boluarte. Esse golpe disfuncional e volátil foi o gesto terminal de um governo igualmente disfuncional e volátil que levou ao paroxismo um sistema político, claro, disfuncional e volátil.

Boluarte será a sexta presidente em seis anos. Todos os ex-presidentes ou respondem a processos de corrupção ou estão presos. O caos tem raízes profundas.

Nos anos 70 o governo militar encaminhou reformas há muito esperadas, entre elas a agrária, que depuseram as velhas oligarquias. Mas o Peru não conseguiu se reorganizar em outras bases. “Desde então o país se ‘desformalizou’ de maneira completa e radical”, diagnosticou o sociólogo peruano Danilo Martuccelli. “O formal e o informal, o transgressivo e o ilegal, a lei e o caos, tudo se mistura e se combina.” Sintomaticamente, 70% dos trabalhadores são informais.

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Em 1990, Alberto Fujimori fez o que Castillo tentou fazer. Com apoio popular e militar, reprimiu a inflação e o grupo terrorista Sendero Luminoso, mas esvaziou o sistema partidário, cimentou a economia informal, constitucionalizou um racha entre Executivo e Legislativo e normalizou a ideia de que regras devem ser manipuladas ao invés de respeitadas. Finda a ditadura em 2000, sem um sistema que substituísse o das velhas elites, os partidos viraram balcões de negócios e multiplicaram-se os aventureiros. A articulação entre atores e interesses sociais e sua representação institucional foi estraçalhada. A corrupção se tornou endêmica. Para piorar, os remédios foram piores que a doença.

A luta anticorrupção canalizou todas as frustrações nacionais. “A vida coletiva é percebida a partir da moralidade, como o teatro de uma oposição cíclica entre o bem e o mal. Na verdade, uma cruzada entre os bons e os maus. Segundo essa visão, a vida coletiva é um eterno tribunal de justiça”, diz Martuccelli. “Isso obstrui o enfrentamento dos problemas. Na raiz da moralização maniqueísta da vida coletiva no Peru se encontram processos econômicos, sociais e políticos que dissolveram antigos marcos de referência da sociedade peruana (classes, sindicatos, partidos, ideologias políticas, etc.).” Numa sociedade assim, a retórica anticorrupção “se tornou a principal linguagem utilizada para apreender, nomear e diagnosticar as grandes transformações e os males profundos”. Não à toa, a Constituição prevê o impeachment por “incapacidade moral permanente”, algo bastante arbitrário.

Hoje os peruanos veem os políticos como o grande mal, mas esperam da política a grande redenção, seja na forma de uma ruptura institucional refundadora, seja na de um caudilho enérgico, independente e impoluto – o leninista Castillo, um professor rural sem experiência política, foi só sua última e mais caricata versão.

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O país precisa de mais política, renunciando a esperanças redentoras e cruzadas morais em favor de uma dieta modesta de disputa de ideias e solução de conflitos que encaminhe, dia após dia, reformas pequenas, mas eficazes, ao invés de pactos fundadores grandiosos, cíclicos e ineficazes que só aceleram a espiral de degradação política.

Se Boluarte impuser um freio de arrumação, negociando bases congressuais que ao menos estabilizem a relação entre Executivo e Legislativo, já terá dado um grande passo nessa direção.

Na manhã de quarta-feira, quando o Congresso peruano votaria uma terceira moção de impeachment de Pedro Castillo, o editorial do jornal La República clamava: Renuncie, presidente. Uma alternativa em tese sensata, mas naquele ponto inviável, seria Castillo negociar concessões com lideranças parlamentares, formando novas bases. Outra, mais ousada, seria convocar eleições gerais. Mas ele optou pela mais desesperada e fantástica: dissolver o Congresso e governar por decreto, anunciando uma constituinte e a reorganização do Judiciário. Ministros e aliados debandaram. O Tribunal Constitucional, o Ministério Público e o Exército condenaram a intentona. Em duas horas, Castillo estava preso e o Congresso empossou a vice-presidente Dina Boluarte. Esse golpe disfuncional e volátil foi o gesto terminal de um governo igualmente disfuncional e volátil que levou ao paroxismo um sistema político, claro, disfuncional e volátil.

Boluarte será a sexta presidente em seis anos. Todos os ex-presidentes ou respondem a processos de corrupção ou estão presos. O caos tem raízes profundas.

Nos anos 70 o governo militar encaminhou reformas há muito esperadas, entre elas a agrária, que depuseram as velhas oligarquias. Mas o Peru não conseguiu se reorganizar em outras bases. “Desde então o país se ‘desformalizou’ de maneira completa e radical”, diagnosticou o sociólogo peruano Danilo Martuccelli. “O formal e o informal, o transgressivo e o ilegal, a lei e o caos, tudo se mistura e se combina.” Sintomaticamente, 70% dos trabalhadores são informais.

Em 1990, Alberto Fujimori fez o que Castillo tentou fazer. Com apoio popular e militar, reprimiu a inflação e o grupo terrorista Sendero Luminoso, mas esvaziou o sistema partidário, cimentou a economia informal, constitucionalizou um racha entre Executivo e Legislativo e normalizou a ideia de que regras devem ser manipuladas ao invés de respeitadas. Finda a ditadura em 2000, sem um sistema que substituísse o das velhas elites, os partidos viraram balcões de negócios e multiplicaram-se os aventureiros. A articulação entre atores e interesses sociais e sua representação institucional foi estraçalhada. A corrupção se tornou endêmica. Para piorar, os remédios foram piores que a doença.

A luta anticorrupção canalizou todas as frustrações nacionais. “A vida coletiva é percebida a partir da moralidade, como o teatro de uma oposição cíclica entre o bem e o mal. Na verdade, uma cruzada entre os bons e os maus. Segundo essa visão, a vida coletiva é um eterno tribunal de justiça”, diz Martuccelli. “Isso obstrui o enfrentamento dos problemas. Na raiz da moralização maniqueísta da vida coletiva no Peru se encontram processos econômicos, sociais e políticos que dissolveram antigos marcos de referência da sociedade peruana (classes, sindicatos, partidos, ideologias políticas, etc.).” Numa sociedade assim, a retórica anticorrupção “se tornou a principal linguagem utilizada para apreender, nomear e diagnosticar as grandes transformações e os males profundos”. Não à toa, a Constituição prevê o impeachment por “incapacidade moral permanente”, algo bastante arbitrário.

Hoje os peruanos veem os políticos como o grande mal, mas esperam da política a grande redenção, seja na forma de uma ruptura institucional refundadora, seja na de um caudilho enérgico, independente e impoluto – o leninista Castillo, um professor rural sem experiência política, foi só sua última e mais caricata versão.

O país precisa de mais política, renunciando a esperanças redentoras e cruzadas morais em favor de uma dieta modesta de disputa de ideias e solução de conflitos que encaminhe, dia após dia, reformas pequenas, mas eficazes, ao invés de pactos fundadores grandiosos, cíclicos e ineficazes que só aceleram a espiral de degradação política.

Se Boluarte impuser um freio de arrumação, negociando bases congressuais que ao menos estabilizem a relação entre Executivo e Legislativo, já terá dado um grande passo nessa direção.

Na manhã de quarta-feira, quando o Congresso peruano votaria uma terceira moção de impeachment de Pedro Castillo, o editorial do jornal La República clamava: Renuncie, presidente. Uma alternativa em tese sensata, mas naquele ponto inviável, seria Castillo negociar concessões com lideranças parlamentares, formando novas bases. Outra, mais ousada, seria convocar eleições gerais. Mas ele optou pela mais desesperada e fantástica: dissolver o Congresso e governar por decreto, anunciando uma constituinte e a reorganização do Judiciário. Ministros e aliados debandaram. O Tribunal Constitucional, o Ministério Público e o Exército condenaram a intentona. Em duas horas, Castillo estava preso e o Congresso empossou a vice-presidente Dina Boluarte. Esse golpe disfuncional e volátil foi o gesto terminal de um governo igualmente disfuncional e volátil que levou ao paroxismo um sistema político, claro, disfuncional e volátil.

Boluarte será a sexta presidente em seis anos. Todos os ex-presidentes ou respondem a processos de corrupção ou estão presos. O caos tem raízes profundas.

Nos anos 70 o governo militar encaminhou reformas há muito esperadas, entre elas a agrária, que depuseram as velhas oligarquias. Mas o Peru não conseguiu se reorganizar em outras bases. “Desde então o país se ‘desformalizou’ de maneira completa e radical”, diagnosticou o sociólogo peruano Danilo Martuccelli. “O formal e o informal, o transgressivo e o ilegal, a lei e o caos, tudo se mistura e se combina.” Sintomaticamente, 70% dos trabalhadores são informais.

Em 1990, Alberto Fujimori fez o que Castillo tentou fazer. Com apoio popular e militar, reprimiu a inflação e o grupo terrorista Sendero Luminoso, mas esvaziou o sistema partidário, cimentou a economia informal, constitucionalizou um racha entre Executivo e Legislativo e normalizou a ideia de que regras devem ser manipuladas ao invés de respeitadas. Finda a ditadura em 2000, sem um sistema que substituísse o das velhas elites, os partidos viraram balcões de negócios e multiplicaram-se os aventureiros. A articulação entre atores e interesses sociais e sua representação institucional foi estraçalhada. A corrupção se tornou endêmica. Para piorar, os remédios foram piores que a doença.

A luta anticorrupção canalizou todas as frustrações nacionais. “A vida coletiva é percebida a partir da moralidade, como o teatro de uma oposição cíclica entre o bem e o mal. Na verdade, uma cruzada entre os bons e os maus. Segundo essa visão, a vida coletiva é um eterno tribunal de justiça”, diz Martuccelli. “Isso obstrui o enfrentamento dos problemas. Na raiz da moralização maniqueísta da vida coletiva no Peru se encontram processos econômicos, sociais e políticos que dissolveram antigos marcos de referência da sociedade peruana (classes, sindicatos, partidos, ideologias políticas, etc.).” Numa sociedade assim, a retórica anticorrupção “se tornou a principal linguagem utilizada para apreender, nomear e diagnosticar as grandes transformações e os males profundos”. Não à toa, a Constituição prevê o impeachment por “incapacidade moral permanente”, algo bastante arbitrário.

Hoje os peruanos veem os políticos como o grande mal, mas esperam da política a grande redenção, seja na forma de uma ruptura institucional refundadora, seja na de um caudilho enérgico, independente e impoluto – o leninista Castillo, um professor rural sem experiência política, foi só sua última e mais caricata versão.

O país precisa de mais política, renunciando a esperanças redentoras e cruzadas morais em favor de uma dieta modesta de disputa de ideias e solução de conflitos que encaminhe, dia após dia, reformas pequenas, mas eficazes, ao invés de pactos fundadores grandiosos, cíclicos e ineficazes que só aceleram a espiral de degradação política.

Se Boluarte impuser um freio de arrumação, negociando bases congressuais que ao menos estabilizem a relação entre Executivo e Legislativo, já terá dado um grande passo nessa direção.

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