Pouco mais de um mês após a eleição, o País voltou a registrar filas de espera para o Auxílio Brasil. Quase 128 mil famílias tiveram o cadastro aprovado em novembro, mas não receberão o benefício neste mês. O Ministério da Cidadania não informou o motivo do represamento, mas tudo indica não haver recursos orçamentários para fazer o pagamento. O retorno das filas é mais uma promessa descumprida pelo governo de Jair Bolsonaro, que, convenientemente, somente conseguiu mantê-las zeradas nos três meses que antecederam à disputa que sacramentou sua derrota.
Todos os números do Auxílio Brasil impressionam. O valor mínimo do benefício, de R$ 600, é o maior dos últimos anos, e a ele se somará o extra de R$ 150 por criança. Em termos anuais, o custo do programa foi multiplicado por cinco desde 2019 e deve atingir R$ 175 bilhões em 2023. No mesmo período, o número de famílias alcançadas subiu de pouco mais de 14 milhões para 21,6 milhões. Em suma, o País nunca teve tantas famílias cadastradas e jamais gastou tanto com uma política de transferência de renda, uma combinação que, em tese, tinha tudo para acabar com as filas e reduzir a pobreza extrema. Mas o que se vê na prática é o contrário disso, o que sugere que o programa social tem falhas sérias de concepção, acesso, alcance e fiscalização.
Especialistas em políticas sociais do País são unânimes em apontar a falta de foco do Auxílio Brasil. O crescimento exponencial de famílias unipessoais nos últimos anos é uma evidência disso, como apontou uma recente auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A Corte de contas suspeita que 3,5 milhões de famílias se tenham dividido artificialmente para auferir mais de um benefício. Por isso, a equipe de transição pretende sugerir ao governo eleito que convoque 5 milhões de pessoas a comparecer aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) para comprovar sua situação e evitar o bloqueio dos pagamentos.
Se essa é a falha mais evidente do Auxílio Brasil, certamente não é a única. No livro Diretrizes para o Desenho de uma Política para a Superação da Pobreza, lançado neste ano, os professores do Insper Laura Muller Machado e Ricardo Paes de Barros apontam que o caminho para o combate à miséria passa por priorizar os mais vulneráveis, mas, também, por criar condições para que as famílias atinjam a autonomia. Isso requer que o governo trate cada situação com a especificidade que ela enseja, com profissionais que acompanhem as famílias de perto e ofereçam o necessário para assegurar a elas uma cesta de direitos sociais e a garantia do direito ao trabalho.
Para as mães de crianças pequenas, vagas em creches são fundamentais para manter um emprego em tempo integral. Para homens e mulheres que exercem funções que já não mais existem no mercado de trabalho, é necessária uma requalificação profissional. “A gente tem de chegar perto da pobreza. Ela se supera olho no olho, frente a frente, fazendo um acompanhamento humanizado e presente. Não é algo a distância, como um depósito numa conta bancária”, disse Laura, em entrevista ao Estadão.
Diante de um país ainda tão dividido, entende-se a pressa do governo eleito em garantir o cumprimento das promessas de campanha referentes ao renomeado Bolsa Família, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição. Mas o gigantismo que o programa social atingiu torna inevitável que ele seja avaliado com mais pragmatismo a partir de janeiro e reavaliado de forma periódica para que cumpra seus objetivos.
O dinheiro precisa ser mais bem aplicado e trazer resultados efetivos no combate à miséria. Pela recorrência com que as filas retornam, fica claro que impedir o avanço da desigualdade social demanda muito mais que depósitos na conta dos beneficiários. Requer, também, um alinhamento com políticas públicas transversais que garantam a inserção produtiva dos adultos e universalizem o acesso a serviços básicos de saúde e educação, para que seja possível oferecer às crianças algumas das oportunidades que seus pais nunca tiveram.