A pretensão do Supremo Tribunal Federal (STF) de esbulhar a competência do Congresso para legislar sobre a regulação das redes sociais é conhecida pela loquacidade de alguns ministros, que parecem ter perdido o pudor de falar em público aquilo que não deveriam ou, quando muito, deveriam falar apenas nos autos. De modo que não surpreende o mau começo da leitura de votos acerca da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Ao que tudo indica, o STF caminha a passos largos para, sem ter mandato para isso, criar regras tão draconianas para a manifestação do pensamento nas redes sociais que, na prática, reinstalará a censura prévia no Brasil.
O referido dispositivo, convém recordar, determina claramente a condição para responsabilização das empresas de tecnologia pelos conteúdos publicados por terceiros em suas plataformas, em particular nas redes sociais. As chamadas big techs só podem ser responsabilizadas civilmente se, após uma decisão judicial, deixarem de tomar as providências que lhes foram determinadas. A única exceção a essa regra também está escrita em português cristalino no artigo 21 do mesmo Marco Civil da Internet, que diz, resumidamente, que as empresas serão responsáveis por conteúdos produzidos por terceiros que violem a intimidade sexual de outrem quando não retirarem esses conteúdos do ar após notificação das vítimas.
O primeiro e único a votar até o momento foi o ministro Dias Toffoli, relator do processo no STF. Com um voto confuso e uma peroração constrangedora sobre o que ele entende ser o limite da liberdade de expressão, Toffoli defendeu em seu relatório não só a punição das chamadas big techs em caso de “publicações criminosas”, como também, pasme o leitor, a criação de regras para a oferta de seus serviços no Brasil. Ocioso dizer que essa regulação das redes sociais, na visão luzidia de Toffoli, deverá ser feita pelo STF, e não pelo povo por meio de seus representantes eleitos, se e quando achar oportuno.
A qualquer um dos ministros do STF bastaria dizer, com fundamentos factuais e jurídicos, se entende que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é constitucional ou não. É evidente que é, pois os legisladores tomaram o cuidado de redigi-lo, após um longo e profícuo debate envolvendo a sociedade civil, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, como diz o caput do artigo, em pleno acordo com a Constituição. Se o artigo deixou de proteger direitos fundamentais dos brasileiros passados dez anos de sua vigência, o que não parece ser o caso, cabe ao Congresso revisitá-lo, não ao Supremo, evidentemente. Uma lei anacrônica não é necessariamente uma lei inconstitucional. E este nem é o caso dos artigos 19 e 21, válidos como estão escritos.
O STF, contudo, parece ter tomado gosto pelo autoatribuído papel de zelador do Estado Democrático de Direito, além de se ver na posição de “recivilizar o País”, nada menos. Imbuída desse espírito purgador, a Corte não se constrange em virar as costas para a mesmíssima Constituição que deveria defender, traindo-a, é forçoso dizer, em favor da visão absolutamente particular que seus ministros têm sobre o que pode ou não pode circular como discurso na esfera pública.
Nesse sentido, o voto de Toffoli, haja vista a sua condição de relator do processo, é sintomático do modo exótico como um tema de fundamental importância para a democracia no Brasil e no mundo, a liberdade de expressão, tem sido tratado pela mais alta Corte de Justiça do País. É bem verdade que se está tratando de um ministro que não foi capaz sequer de ser aprovado em concurso para juiz de primeira instância, mas a indigência intelectual expressa no voto de Toffoli – que chegou a confundir a expressão discursiva com a prática de crimes tipificados no Código Penal – só não é mais chocante do que o ânimo do STF de, ao custo de uma degradação ainda maior de sua legitimidade, rasgar a Lei Maior e cassar a palavra dos cidadãos ex ante – pois é isso o que vai acontecer – em nome de um suposto combate à “desinformação”, aos “discursos de ódio” e aos “ataques à democracia”.