Recentes manifestações da militância bolsonarista, nas ruas e no Parlamento, têm insistido na denúncia de supostas violações a direitos das pessoas presas pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. No fim de novembro, o deputado Filipe Barros protocolou requerimento para a criação de uma comissão externa na Câmara, com o objetivo de “acompanhar in loco a situação carcerária, as prerrogativas dos advogados e os julgamentos dos presos em decorrência do 8 de janeiro”. Nesse requerimento, o parlamentar cita como justificativa para instauração da comissão a morte de Cleriston Pereira da Cunha, que estava preso em decorrência daqueles atos.
A crítica bolsonarista, porém, não se limita às condições prisionais, mirando também o procedimento instaurado no STF para o julgamento dos réus. Protesta-se, por exemplo, contra as penas alegadamente excessivas impostas às pessoas julgadas, assim como a realização de julgamentos pelo plenário virtual da Corte, o que contrariaria as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.
A centralidade desses temas para a militância é confirmada no vídeo de convocação para os recentes atos de rua. Além da crítica à indicação de Flávio Dino ao STF, tais atos tinham como mote, nas palavras de um parlamentar, o “respeito ao direito do cidadão de se defender”. Como se vê, em suas manifestações hodiernas, o bolsonarismo tem ido além da defesa de sua peculiar concepção da liberdade de expressão para encampar outros direitos humanos.
A incorporação dessa temática à pauta de qualquer movimento político é bem-vinda. Mas, no caso dos partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro, é preciso atentar aos termos e à extensão dessa incorporação.
Nesse sentido, é curioso observar que os reclamos humanitários dos bolsonaristas coincidem com o aniversário de 75 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948.
Essa Declaração elevou os direitos humanos a um patamar inédito. Com ela, o reconhecimento desses direitos deixou de ser uma questão local, dependente da iniciativa de cada Estado, e passou a ser universal, de modo que seus destinatários não são mais apenas os cidadãos desse ou daquele Estado, mas todos os seres humanos.
Além dessa universalização, a Declaração de 1948 impulsionou a especificação dos direitos humanos. Com isso, a titularidade desses direitos deixou de se restringir ao indivíduo singular para alcançar, por exemplo, minorias étnicas e religiosas. Da mesma forma, aquele indivíduo deixou de ser visto como um ente genérico e passou a ser considerado em suas específicas maneiras de ser em sociedade – como mulher, idoso, etc. Vêm daí documentos como a convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio (1948) e a convenção sobre os direitos políticos da mulher (1952), entre outros.
Esse processo de universalização e especificação dos direitos humanos, inaugurado com a Declaração de 1948, põe à prova os apelos bolsonaristas pelo reconhecimento desses direitos. Afinal, o bolsonarismo nunca primou por esse reconhecimento. Pelo contrário: Bolsonaro já tratou temas relacionados aos direitos humanos como “direitos de bandidos” e “esterco da vagabundagem”, desvalorizando ou ironizando situações e reivindicações de grupos desfavorecidos ou em minoria na sociedade.
Não espanta que o ex-mandatário ignore que um dos fundamentos da nossa República é a dignidade da pessoa humana, o que impõe ao Estado, suas instituições e representantes valorizar e certificar o cumprimento dos direitos humanos. Obviamente, isso também se aplica às pessoas que aguardam julgamento pelos atos golpistas do 8 de Janeiro. No entanto, aqueles que reivindicam a aplicação desses direitos a tais pessoas devem estar prontos para reconhecê-los também em relação às demais. Os direitos humanos são patrimônio de todos os seres humanos, não só dos que arrogantemente se consideram “humanos direitos” – até porque, quantos “humanos direitos” havia na invasão e destruição da Praça dos Três Poderes?