Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em 10 anos a população de rua no Brasil aumentou 211%. A calamidade é global. Há anos, nas metrópoles de países ricos e pobres, de San Francisco ao Cairo, de Pequim a Paris, dormem a cada noite mais miseráveis nas ruas.
Esse desamparo pandêmico sugere distúrbios socioculturais profundos: desintegração de laços comunitários, famílias desestruturadas, solidão, transtornos mentais, álcool, drogas. Todos esses fatores são pressionados por falhas de mercado. Sobretudo, o custo de moradia. Uma pesquisa estatística em Nova York sugeriu que uma queda de 10% nos custos de aluguel resultaria num declínio de 8% no número dos sem-teto. Um dos motivos pelos quais Tóquio quase não tem moradores de rua é a moradia barata. Como em outros países, no Brasil os custos têm aumentado. Metade das famílias que vivem com até três salários mínimos consome mais de um terço da renda com aluguel.
Além de políticas para gerar emprego, reduzir a pobreza e baratear a moradia (como adensamentos urbanos, habitações sociais ou aluguéis subsidiados), nas políticas focadas nos sem-teto há uma disputa entre duas estratégias: “moradia primeiro” ou “cuidado primeiro”. Para a primeira, a solução é instalar os sem-teto em moradias subsidiadas, sem pré-qualificações como sobriedade ou tratamentos psiquiátricos. Para a segunda, é preciso abrigá-los em alojamentos temporários, condicionando moradias permanentes a compromissos de reabilitação. Para os partidários da primeira, a maior evidência é a Finlândia, o único país da Europa que reduziu sua população de rua. Os críticos contrapõem casos como o da Califórnia. O Estado mais rico dos EUA investiu bilhões em Housing First, mas em cinco anos, enquanto a população de rua no país cresceu 6%, a da Califórnia cresceu um terço. Com 12% da população do país, o Estado contabiliza quase metade dos americanos sem-teto. O contraste pede cautela. Talvez nenhum dos dois lados deva ter primazia, porque ambos devem vir primeiro, cada um em cada situação.
A população dos sem-teto é complexa. Há quem passe temporariamente pelas ruas e há quem viva permanentemente nelas. Há quem esteja momentaneamente sem condição de trabalhar e gerar renda e quem é parcial ou totalmente incapacitado por limitações físicas ou cognitivas; e há quem caia no relento por algum comportamento antissocial e autodestrutivo. Para estes, distúrbios mentais, abuso de entorpecentes e delinquências são a porta de entrada das ruas. Para os outros, as ruas podem ser a porta de entrada para delinquências, abusos e distúrbios. Todos esses casos pedem o cuidado do Estado de Bem-Estar Social. Mas de modos diferentes.
O modelo de “moradia primeiro” deveria priorizar famílias e pessoas em situação de rua por pura pobreza. Em São Paulo, o programa De Braços Abertos pagou moradias a dependentes químicos e psicóticos. Várias foram destruídas. Muitos voltaram a viver nas ruas, alguns morreram de overdose. São pessoas sem autonomia, que precisam ser abrigadas em comunidades e tratadas por profissionais antes de assumir um lar.
Entre 1995 e 2020 a pobreza extrema no Brasil caiu de 15% para 5%. Nos últimos cinco anos, o orçamento do Bolsa Família saltou de R$ 30 bilhões para R$ 175 bilhões. Mas o aumento exorbitante da população de rua sugere que os programas de transferência de renda não estão devidamente focados e são insuficientes sem outras formas de assistência. Além disso, boas intenções intoxicadas por romantismos podem, à custa de combater excessos, produzir outros piores. O movimento antimanicomial começou denunciando condições desumanas de hospitais psiquiátricos, mas, ao invés de humanizá-los, lutou por aboli-los. Hoje a disponibilidade de leitos no Brasil é 90% menor que a média da OCDE.
O aumento explosivo da população de rua é um fracasso cívico. Mas a solução pede menos voluntarismo e mais ciência, menos utopias e mais pragmatismo. O problema é multidimensional e o Estado precisa enfrentá-lo em suas múltiplas dimensões.