O Judiciário resolveu emparedar acintosamente o Executivo e o Legislativo para defender seus privilégios classistas, de resto aberrações de uma República que, 135 anos depois, ainda peleja para se afirmar como tal em sua plenitude.
Após o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, dizer com espantosa naturalidade que “o Judiciário não tem participação nem responsabilidade sobre a crise fiscal” do País, à guisa de defesa dos penduricalhos que são pagos aos juízes sem o devido corte pelo teto constitucional, as comportas do corporativismo mais desabrido se abriram. Ao que parece, a declaração do sr. Barroso encorajou outros magistrados a repetirem o mesmo insulto à inteligência alheia.
No dia 13 passado, o desembargador Carlos Muta, presidente do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3) – o maior do País, abrangendo os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul –, criticou em termos absurdos o plano de corte de gastos apresentado recentemente pelo governo Lula da Silva ao Congresso. Como se sabe, um dos principais pontos do pacote é a contenção dos supersalários de uma casta de servidores públicos, formada em sua maioria por membros do Judiciário e do Ministério Público.
Segundo o desembargador Muta, o Judiciário atravessa um momento “particularmente difícil”, embora não se saiba exatamente por quê. De modo que, para ele, a eventual aprovação do pacote pelo Congresso seria, pasme o leitor, um “atentado constitucional ao sistema de Justiça”. Sendo perfeitamente capaz de saber que sua fala expressa um teratismo jurídico, o desembargador Muta não fez outra coisa senão um discurso político – e dos mais descabidos, por seu tom ameaçador.
O que está posto à discussão no Legislativo nada mais é do que a reafirmação de um mandamento da Constituição, que proíbe expressamente que qualquer servidor público receba vencimentos superiores aos que são pagos aos ministros do STF, hoje fixados em pouco mais de R$ 44 mil. Portanto, se “atentado” à Lei Maior há, ele se consubstancia na pletora de manobras que conselhos e associações representativas dos interesses de juízes e promotores engendram para driblar o teto constitucional. Por meio do que chamam convenientemente de “verbas indenizatórias”, robustecem os holerites de Suas Excelências em milhares de reais além do que seria permitido, e sem a incidência de Imposto de Renda, como é sempre bom lembrar.
Como fizera Barroso antes dele, o presidente do TRF-3 ainda achou que era o caso de ameaçar o Congresso e o País com um suposto “colapso” do sistema judicial caso os ótimos salários das carreiras jurídicas do Estado se restrinjam, ora vejam, ao teto constitucional. Se o pacote de corte de gastos for aprovado, chantageou o desembargador Muta, nada menos do que 32 dos 54 desembargadores federais do TRF-3 poderiam antecipar suas aposentadorias. “Serão centenas de milhares, para não falar milhões, de processos que podem sofrer atraso”, disse o doutor. Mais um pouco, e o magistrado ameaçaria o País com uma greve.
Seguindo a inspiração paredista do desembargador Muta, o desembargador Nino Toldo, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), clube associativo bastante conhecido por ser um dos mais agressivos defensores dos privilégios corporativos do Judiciário, exortou juízes País afora a engrossarem um “movimento de resistência” contra o plano de ajuste – ajuste este que já é muitíssimo tímido, diga-se. Segundo Toldo, “os servidores públicos, especialmente os magistrados e, particularmente, os federais, não são os responsáveis pelas mazelas fiscais do Brasil”.
A virulência das reações no Judiciário à simples ideia de cortar privilégios evidentemente antirrepublicanos mostra que, mesmo tímido, o pacote do governo tem seus méritos. Como já ficou claro, parte do Judiciário considera que os mimos da magistratura são intocáveis, mesmo no momento em que todos, a começar pelos privilegiados, são chamados a apertar os cintos.