Nem as piores distopias anteviram que, na terceira década do século 21, o mundo estaria às voltas com tamanha disfuncionalidade do sistema multilateral, de que são evidências os sangrentos conflitos que se prolongam. Ou que a comunidade internacional se mostraria inapta a enfrentar desafios globais como desigualdade, pandemias ou a crise climática.
É neste cenário que vicejam as soluções unilaterais, a própria negação do multilateralismo. Desde a Rio-92, houve avanços inegáveis na construção de regimes normativos multilaterais que regulam as agendas do clima e da diversidade biológica. Contudo, está claro que os esforços foram insuficientes para reverter a grave emergência com que o planeta se defronta.
Na ânsia de superar desafios sem precedentes, impera a lei do mais forte: a União Europeia (UE) lançou em 2019 seu Green Deal; os EUA aprovaram, em 2022, o Inflation Reduction Act (IRA); e a China vem investindo na transformação da sua matriz energética. Nesses exemplos e em outros, o que se vê são estratégias localizadas para enfrentar questões globais. O próprio Brasil, mesmo com suas conhecidas restrições fiscais, lançou o Plano de Transformação Ecológica, complementado com mecanismos de atração de investimentos externos para descarbonização.
Há falta de lideranças internacionais. Essa infeliz realidade inviabiliza uma reconfiguração que só será alcançada via ampla reforma dos organismos multilaterais. Resta aos que habitamos o mundo real das possibilidades, dos riscos e oportunidades, trabalhar da melhor forma para evitar que medidas até bem-intencionadas acabem aprofundando o fosso da concentração de poder e riqueza; e frustrando os objetivos almejados – sem falar na eventual captura de bandeiras meritórias por interesses protecionistas.
O setor de árvores cultivadas das empresas que plantam, colhem e replantam com finalidade industrial é uma história de sucesso no Brasil. Por décadas, investiram em P&D asseguraram saltos de produtividade que nos tornaram protagonistas em bioprodutos como celulose, papel e painéis, dentre vários outros. Nossas árvores prestam valiosos serviços ecossistêmicos, a produção obedece a rigorosas certificações internacionais e estamos a caminho da autossuficiência energética, ao mesmo tempo que entregamos produtos que substituem itens de origem fóssil.
Não obstante, fomos um dos setores incluídos na nova legislação da UE que obriga a comprovação, pelos importadores de seus países-membros, de que nossas commodities não carreguem desmatamento. Para as associadas da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), as novas exigências, à primeira vista, não acarretam maiores problemas. O setor já tem toda a sua produção rastreada há anos. No entanto, como o diabo mora nos detalhes, é na atual fase de regulamentação da EUDR, sigla da nova norma, que saltam aos olhos as dificuldades que advirão de sua aplicação, prevista para o início de 2025.
Eventualmente, aspectos da EUDR poderão ser objeto de algum tipo de recurso à Organização Mundial do Comércio (OMC). O fato, porém, é que nossas empresas, que têm no bloco europeu o segundo maior destino de exportações, não podem descuidar de uma atitude pragmática para esclarecer as autoridades da Comissão Europeia. Somos um país de dimensão continental, que investiu décadas na consolidação de uma trajetória que o tornou, por exemplo, o segundo maior produtor e o primeiro exportador de celulose do mundo, com manejo sustentável referência mundial.
É nesse contexto que a Ibá e suas associadas estão em Bruxelas, a fim de manter interlocução com as titulares das áreas ambiental e de comércio exterior da Comissão Europeia, além de dialogar com membros do Parlamento europeu, representantes diplomáticos de nossos principais mercados e outras autoridades. Temos contado com o decisivo apoio dos Ministérios das Relações Exteriores, do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), da Agricultura e Pecuária (Mapa) e do Meio Ambiente (MMA), além de nossas representações diplomáticas em Bruxelas e em outras capitais europeias, bem como da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) Brasil.
Vamos endereçar lacunas que podem representar dificuldades técnicas e burocráticas. Há questões preocupantes, como metodologias de captação e processamento de dados sem os indispensáveis protocolos de cibersegurança ou sem sistemas confiáveis e integrados de gerenciamento de informações concorrencialmente sensíveis. Para citar outro exemplo desafiador, nas plataformas de imagens de cobertura florestal disponibilizadas pela UE, mais de 60% das áreas de cultivo de árvores do Brasil aparecem como florestas, sem a distinção de serem áreas de silvicultura. A prevalecer tal abordagem, operações legítimas de colheita de áreas plantadas poderiam ser decretadas como desmatamento.
Quase duas dezenas de altos executivos e técnicos de nossas empresas, além de representantes de governos estaduais, integram a missão a Bruxelas. Em razão dos interesses do Brasil, da complexidade do que está em jogo e dos desafios deste nosso mundo em plena crise do multilateralismo, cabe também ao setor privado mostrar sua cara, evidenciar que não teme escrutínio feito em boa-fé, que partilha os valores da sustentabilidade. Acreditamos na necessidade de reinvenção do multilateralismo e de um green deal planetário.
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SÃO, RESPECTIVAMENTE, ECONOMISTA, PRESIDENTE DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE ÁRVORES (IBÁ), EX-GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO; E DIPLOMATA DE CARREIRA, EMBAIXADOR, PRESIDENTE DA EMPAPEL, TEM ASSENTO NO ADVISORY COMMITTEE ON SUSTAINABLE FOREST-BASED INDUSTRIES (ACSFI) DA FAO