Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Opinião|A busca de luz em meio à tragédia de Uvalde


Culpar a falta de cuidados com a saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa é hipocrisia – mas uma boa hipocrisia.

Por Paulo Sotero

O massacre de Uvalde, a cidadezinha do Texas onde 19 crianças descendentes de mexicanos e duas professoras foram mortas à bala na semana passada por um jovem desequilibrado numa sala de aula da escola primária, foi tragédia anunciada por episódios semelhantes que se multiplicaram na última década a intervalos cada vez menores. A começar pelo choque inicial, a carnificina seguiu roteiro conhecido num país onde circulam 400 milhões de armas de fogo – 100 milhões a mais do que dez anos atrás.

O presidente Joe Biden foi a Uvalde para compartilhar a dor das famílias e do país e implorou ao Congresso, que seu partido domina, a responder com medidas concretas e efetivas para limitar o acesso às armas. O senador Ted Cruz, conservador ultradireitista com diploma em Direito por Harvard, disse, com característica hipocrisia, que não comentaria, pois fazê-lo seria politizar o sofrimento e abrir flanco no debate sobre a limitação do direito dos americanos de ter e portar armas – uma leitura absurda da Segunda Emenda da Constituição, adotada no final do século 18 para proteger a independência e a soberania das antigas colônias, que se haviam levantado e derrotado o então maior exército do mundo.

Posto contra a parede pelo segundo episódio do tipo no seu Estado, o governador do Texas, Greg Abbott, acrescentou à ladainha um chamamento à necessidade óbvia de mais cuidados psicológicos para jovens numa sociedade viciada em violência e brutalidade.

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Desta vez, a trapaça retórica dos conservadores pode não ter colado. Em vez de se calarem, como no passado, parlamentares, líderes religiosos e estudiosos da violência aceitaram a tese do senador, mas responderam que é hora, sim, de politizar o debate sobre a violência armada contra civis indefesos que aprofunda a divisão e ameaça a própria sobrevivência dos Estados Unidos como sociedade civilizada.

A responsabilização da saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa, que é obviamente parte da solução, pode melhorar e produzir boas consequências. “Uma pessoa que mata outra tem um problema mental, e ponto final. O governo precisa encontrar uma maneira de focar no desafio de saúde mental e fazer algo a respeito”, afirmou Abbott. O mesmo argumento foi repetido por políticos republicanos e até mesmo pelo ex-presidente Donald Trump em discurso no último fim de semana à convenção nacional da Associação Nacional do Rifle, o poderoso lobby das armas.

A hipocrisia desses políticos, a começar pelos texanos, está nos números.

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O Texas é lanterninha entre os 50 Estados em investimentos em cuidados com saúde mental, segundo a Mental Health America, uma organização nacional que se dedica ao tema. Por quê? Parte da resposta está na limitação, no Texas e em outros Estados conservadores, do provimento de serviço de saúde mental nos seguros médicos existentes. E não por falta de recursos. O governo federal ofereceu e continua a oferecer centenas de milhões de dólares aos Estados para a expansão dos cuidados médicos à saúde mental. Trata-se de tema preferencial do governador do Texas, que há anos proclama suas verdades sobre o assunto.

Saúde mental e violência armada estão novamente em evidência. Mas a confluência dos dois temas dificilmente produzirá as consequências desejadas e recomendadas pelos especialistas, pois fazê-lo requer uma preocupação genuína com o bem-estar dos grupos sociais vitimados por tragédias como as de Uvalde – uma preocupação que não está no radar dos conservadores, empenhados cada vez mais em estratégias de divisão e polarização da sociedade em grupos que não se falam e, de fato, não parecem fazer parte da mesma nação.

Mas nada disso é inevitável. A ativista Yolanda Renee King, 14 anos, neta do reverendo Martin Luther King, o mártir do movimento dos direitos civis morto a tiros por um supremacista branco em 1968, chamou sua geração à luta em artigo no Washington Post. “Eu não quero mais entrar na escola com medo”, escreveu Yolanda, que está na oitava série. “Quero ser uma adolescente. Li muitos dos discursos e sermões do meu avô. Um deles é relevante na esteira desta tragédia (de Uvalde): ‘Com fé, temos de tirar dessa montanha de desespero uma pedra de esperança’”. Yolanda conta que em anos recentes dedicou-se a usar o nobre legado de seu avô para encorajar sua geração a se levantar e exigir mudança, especialmente quando a mudança é difícil. A voz dos enlutados, lembrou a jovem, caiu nos ouvidos de representantes eleitos que não se importam. Mas ela vê em sua escola e entre seus amigos o potencial para a mudança. “Nas palavras do meu avô, a escuridão não vence o ódio – só o amor pode fazê-lo.”

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Nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, essas palavras talvez soem ingênuas em 2022. Elas soaram ingênuas quando foram ditas décadas atrás por Nelson Mandela, na África do Sul. Mas é essencial lembrar que são essas as palavras que ficaram e que iluminam o caminho.

*

JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

O massacre de Uvalde, a cidadezinha do Texas onde 19 crianças descendentes de mexicanos e duas professoras foram mortas à bala na semana passada por um jovem desequilibrado numa sala de aula da escola primária, foi tragédia anunciada por episódios semelhantes que se multiplicaram na última década a intervalos cada vez menores. A começar pelo choque inicial, a carnificina seguiu roteiro conhecido num país onde circulam 400 milhões de armas de fogo – 100 milhões a mais do que dez anos atrás.

O presidente Joe Biden foi a Uvalde para compartilhar a dor das famílias e do país e implorou ao Congresso, que seu partido domina, a responder com medidas concretas e efetivas para limitar o acesso às armas. O senador Ted Cruz, conservador ultradireitista com diploma em Direito por Harvard, disse, com característica hipocrisia, que não comentaria, pois fazê-lo seria politizar o sofrimento e abrir flanco no debate sobre a limitação do direito dos americanos de ter e portar armas – uma leitura absurda da Segunda Emenda da Constituição, adotada no final do século 18 para proteger a independência e a soberania das antigas colônias, que se haviam levantado e derrotado o então maior exército do mundo.

Posto contra a parede pelo segundo episódio do tipo no seu Estado, o governador do Texas, Greg Abbott, acrescentou à ladainha um chamamento à necessidade óbvia de mais cuidados psicológicos para jovens numa sociedade viciada em violência e brutalidade.

Desta vez, a trapaça retórica dos conservadores pode não ter colado. Em vez de se calarem, como no passado, parlamentares, líderes religiosos e estudiosos da violência aceitaram a tese do senador, mas responderam que é hora, sim, de politizar o debate sobre a violência armada contra civis indefesos que aprofunda a divisão e ameaça a própria sobrevivência dos Estados Unidos como sociedade civilizada.

A responsabilização da saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa, que é obviamente parte da solução, pode melhorar e produzir boas consequências. “Uma pessoa que mata outra tem um problema mental, e ponto final. O governo precisa encontrar uma maneira de focar no desafio de saúde mental e fazer algo a respeito”, afirmou Abbott. O mesmo argumento foi repetido por políticos republicanos e até mesmo pelo ex-presidente Donald Trump em discurso no último fim de semana à convenção nacional da Associação Nacional do Rifle, o poderoso lobby das armas.

A hipocrisia desses políticos, a começar pelos texanos, está nos números.

O Texas é lanterninha entre os 50 Estados em investimentos em cuidados com saúde mental, segundo a Mental Health America, uma organização nacional que se dedica ao tema. Por quê? Parte da resposta está na limitação, no Texas e em outros Estados conservadores, do provimento de serviço de saúde mental nos seguros médicos existentes. E não por falta de recursos. O governo federal ofereceu e continua a oferecer centenas de milhões de dólares aos Estados para a expansão dos cuidados médicos à saúde mental. Trata-se de tema preferencial do governador do Texas, que há anos proclama suas verdades sobre o assunto.

Saúde mental e violência armada estão novamente em evidência. Mas a confluência dos dois temas dificilmente produzirá as consequências desejadas e recomendadas pelos especialistas, pois fazê-lo requer uma preocupação genuína com o bem-estar dos grupos sociais vitimados por tragédias como as de Uvalde – uma preocupação que não está no radar dos conservadores, empenhados cada vez mais em estratégias de divisão e polarização da sociedade em grupos que não se falam e, de fato, não parecem fazer parte da mesma nação.

Mas nada disso é inevitável. A ativista Yolanda Renee King, 14 anos, neta do reverendo Martin Luther King, o mártir do movimento dos direitos civis morto a tiros por um supremacista branco em 1968, chamou sua geração à luta em artigo no Washington Post. “Eu não quero mais entrar na escola com medo”, escreveu Yolanda, que está na oitava série. “Quero ser uma adolescente. Li muitos dos discursos e sermões do meu avô. Um deles é relevante na esteira desta tragédia (de Uvalde): ‘Com fé, temos de tirar dessa montanha de desespero uma pedra de esperança’”. Yolanda conta que em anos recentes dedicou-se a usar o nobre legado de seu avô para encorajar sua geração a se levantar e exigir mudança, especialmente quando a mudança é difícil. A voz dos enlutados, lembrou a jovem, caiu nos ouvidos de representantes eleitos que não se importam. Mas ela vê em sua escola e entre seus amigos o potencial para a mudança. “Nas palavras do meu avô, a escuridão não vence o ódio – só o amor pode fazê-lo.”

Nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, essas palavras talvez soem ingênuas em 2022. Elas soaram ingênuas quando foram ditas décadas atrás por Nelson Mandela, na África do Sul. Mas é essencial lembrar que são essas as palavras que ficaram e que iluminam o caminho.

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JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

O massacre de Uvalde, a cidadezinha do Texas onde 19 crianças descendentes de mexicanos e duas professoras foram mortas à bala na semana passada por um jovem desequilibrado numa sala de aula da escola primária, foi tragédia anunciada por episódios semelhantes que se multiplicaram na última década a intervalos cada vez menores. A começar pelo choque inicial, a carnificina seguiu roteiro conhecido num país onde circulam 400 milhões de armas de fogo – 100 milhões a mais do que dez anos atrás.

O presidente Joe Biden foi a Uvalde para compartilhar a dor das famílias e do país e implorou ao Congresso, que seu partido domina, a responder com medidas concretas e efetivas para limitar o acesso às armas. O senador Ted Cruz, conservador ultradireitista com diploma em Direito por Harvard, disse, com característica hipocrisia, que não comentaria, pois fazê-lo seria politizar o sofrimento e abrir flanco no debate sobre a limitação do direito dos americanos de ter e portar armas – uma leitura absurda da Segunda Emenda da Constituição, adotada no final do século 18 para proteger a independência e a soberania das antigas colônias, que se haviam levantado e derrotado o então maior exército do mundo.

Posto contra a parede pelo segundo episódio do tipo no seu Estado, o governador do Texas, Greg Abbott, acrescentou à ladainha um chamamento à necessidade óbvia de mais cuidados psicológicos para jovens numa sociedade viciada em violência e brutalidade.

Desta vez, a trapaça retórica dos conservadores pode não ter colado. Em vez de se calarem, como no passado, parlamentares, líderes religiosos e estudiosos da violência aceitaram a tese do senador, mas responderam que é hora, sim, de politizar o debate sobre a violência armada contra civis indefesos que aprofunda a divisão e ameaça a própria sobrevivência dos Estados Unidos como sociedade civilizada.

A responsabilização da saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa, que é obviamente parte da solução, pode melhorar e produzir boas consequências. “Uma pessoa que mata outra tem um problema mental, e ponto final. O governo precisa encontrar uma maneira de focar no desafio de saúde mental e fazer algo a respeito”, afirmou Abbott. O mesmo argumento foi repetido por políticos republicanos e até mesmo pelo ex-presidente Donald Trump em discurso no último fim de semana à convenção nacional da Associação Nacional do Rifle, o poderoso lobby das armas.

A hipocrisia desses políticos, a começar pelos texanos, está nos números.

O Texas é lanterninha entre os 50 Estados em investimentos em cuidados com saúde mental, segundo a Mental Health America, uma organização nacional que se dedica ao tema. Por quê? Parte da resposta está na limitação, no Texas e em outros Estados conservadores, do provimento de serviço de saúde mental nos seguros médicos existentes. E não por falta de recursos. O governo federal ofereceu e continua a oferecer centenas de milhões de dólares aos Estados para a expansão dos cuidados médicos à saúde mental. Trata-se de tema preferencial do governador do Texas, que há anos proclama suas verdades sobre o assunto.

Saúde mental e violência armada estão novamente em evidência. Mas a confluência dos dois temas dificilmente produzirá as consequências desejadas e recomendadas pelos especialistas, pois fazê-lo requer uma preocupação genuína com o bem-estar dos grupos sociais vitimados por tragédias como as de Uvalde – uma preocupação que não está no radar dos conservadores, empenhados cada vez mais em estratégias de divisão e polarização da sociedade em grupos que não se falam e, de fato, não parecem fazer parte da mesma nação.

Mas nada disso é inevitável. A ativista Yolanda Renee King, 14 anos, neta do reverendo Martin Luther King, o mártir do movimento dos direitos civis morto a tiros por um supremacista branco em 1968, chamou sua geração à luta em artigo no Washington Post. “Eu não quero mais entrar na escola com medo”, escreveu Yolanda, que está na oitava série. “Quero ser uma adolescente. Li muitos dos discursos e sermões do meu avô. Um deles é relevante na esteira desta tragédia (de Uvalde): ‘Com fé, temos de tirar dessa montanha de desespero uma pedra de esperança’”. Yolanda conta que em anos recentes dedicou-se a usar o nobre legado de seu avô para encorajar sua geração a se levantar e exigir mudança, especialmente quando a mudança é difícil. A voz dos enlutados, lembrou a jovem, caiu nos ouvidos de representantes eleitos que não se importam. Mas ela vê em sua escola e entre seus amigos o potencial para a mudança. “Nas palavras do meu avô, a escuridão não vence o ódio – só o amor pode fazê-lo.”

Nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, essas palavras talvez soem ingênuas em 2022. Elas soaram ingênuas quando foram ditas décadas atrás por Nelson Mandela, na África do Sul. Mas é essencial lembrar que são essas as palavras que ficaram e que iluminam o caminho.

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JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

O massacre de Uvalde, a cidadezinha do Texas onde 19 crianças descendentes de mexicanos e duas professoras foram mortas à bala na semana passada por um jovem desequilibrado numa sala de aula da escola primária, foi tragédia anunciada por episódios semelhantes que se multiplicaram na última década a intervalos cada vez menores. A começar pelo choque inicial, a carnificina seguiu roteiro conhecido num país onde circulam 400 milhões de armas de fogo – 100 milhões a mais do que dez anos atrás.

O presidente Joe Biden foi a Uvalde para compartilhar a dor das famílias e do país e implorou ao Congresso, que seu partido domina, a responder com medidas concretas e efetivas para limitar o acesso às armas. O senador Ted Cruz, conservador ultradireitista com diploma em Direito por Harvard, disse, com característica hipocrisia, que não comentaria, pois fazê-lo seria politizar o sofrimento e abrir flanco no debate sobre a limitação do direito dos americanos de ter e portar armas – uma leitura absurda da Segunda Emenda da Constituição, adotada no final do século 18 para proteger a independência e a soberania das antigas colônias, que se haviam levantado e derrotado o então maior exército do mundo.

Posto contra a parede pelo segundo episódio do tipo no seu Estado, o governador do Texas, Greg Abbott, acrescentou à ladainha um chamamento à necessidade óbvia de mais cuidados psicológicos para jovens numa sociedade viciada em violência e brutalidade.

Desta vez, a trapaça retórica dos conservadores pode não ter colado. Em vez de se calarem, como no passado, parlamentares, líderes religiosos e estudiosos da violência aceitaram a tese do senador, mas responderam que é hora, sim, de politizar o debate sobre a violência armada contra civis indefesos que aprofunda a divisão e ameaça a própria sobrevivência dos Estados Unidos como sociedade civilizada.

A responsabilização da saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa, que é obviamente parte da solução, pode melhorar e produzir boas consequências. “Uma pessoa que mata outra tem um problema mental, e ponto final. O governo precisa encontrar uma maneira de focar no desafio de saúde mental e fazer algo a respeito”, afirmou Abbott. O mesmo argumento foi repetido por políticos republicanos e até mesmo pelo ex-presidente Donald Trump em discurso no último fim de semana à convenção nacional da Associação Nacional do Rifle, o poderoso lobby das armas.

A hipocrisia desses políticos, a começar pelos texanos, está nos números.

O Texas é lanterninha entre os 50 Estados em investimentos em cuidados com saúde mental, segundo a Mental Health America, uma organização nacional que se dedica ao tema. Por quê? Parte da resposta está na limitação, no Texas e em outros Estados conservadores, do provimento de serviço de saúde mental nos seguros médicos existentes. E não por falta de recursos. O governo federal ofereceu e continua a oferecer centenas de milhões de dólares aos Estados para a expansão dos cuidados médicos à saúde mental. Trata-se de tema preferencial do governador do Texas, que há anos proclama suas verdades sobre o assunto.

Saúde mental e violência armada estão novamente em evidência. Mas a confluência dos dois temas dificilmente produzirá as consequências desejadas e recomendadas pelos especialistas, pois fazê-lo requer uma preocupação genuína com o bem-estar dos grupos sociais vitimados por tragédias como as de Uvalde – uma preocupação que não está no radar dos conservadores, empenhados cada vez mais em estratégias de divisão e polarização da sociedade em grupos que não se falam e, de fato, não parecem fazer parte da mesma nação.

Mas nada disso é inevitável. A ativista Yolanda Renee King, 14 anos, neta do reverendo Martin Luther King, o mártir do movimento dos direitos civis morto a tiros por um supremacista branco em 1968, chamou sua geração à luta em artigo no Washington Post. “Eu não quero mais entrar na escola com medo”, escreveu Yolanda, que está na oitava série. “Quero ser uma adolescente. Li muitos dos discursos e sermões do meu avô. Um deles é relevante na esteira desta tragédia (de Uvalde): ‘Com fé, temos de tirar dessa montanha de desespero uma pedra de esperança’”. Yolanda conta que em anos recentes dedicou-se a usar o nobre legado de seu avô para encorajar sua geração a se levantar e exigir mudança, especialmente quando a mudança é difícil. A voz dos enlutados, lembrou a jovem, caiu nos ouvidos de representantes eleitos que não se importam. Mas ela vê em sua escola e entre seus amigos o potencial para a mudança. “Nas palavras do meu avô, a escuridão não vence o ódio – só o amor pode fazê-lo.”

Nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, essas palavras talvez soem ingênuas em 2022. Elas soaram ingênuas quando foram ditas décadas atrás por Nelson Mandela, na África do Sul. Mas é essencial lembrar que são essas as palavras que ficaram e que iluminam o caminho.

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JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

O massacre de Uvalde, a cidadezinha do Texas onde 19 crianças descendentes de mexicanos e duas professoras foram mortas à bala na semana passada por um jovem desequilibrado numa sala de aula da escola primária, foi tragédia anunciada por episódios semelhantes que se multiplicaram na última década a intervalos cada vez menores. A começar pelo choque inicial, a carnificina seguiu roteiro conhecido num país onde circulam 400 milhões de armas de fogo – 100 milhões a mais do que dez anos atrás.

O presidente Joe Biden foi a Uvalde para compartilhar a dor das famílias e do país e implorou ao Congresso, que seu partido domina, a responder com medidas concretas e efetivas para limitar o acesso às armas. O senador Ted Cruz, conservador ultradireitista com diploma em Direito por Harvard, disse, com característica hipocrisia, que não comentaria, pois fazê-lo seria politizar o sofrimento e abrir flanco no debate sobre a limitação do direito dos americanos de ter e portar armas – uma leitura absurda da Segunda Emenda da Constituição, adotada no final do século 18 para proteger a independência e a soberania das antigas colônias, que se haviam levantado e derrotado o então maior exército do mundo.

Posto contra a parede pelo segundo episódio do tipo no seu Estado, o governador do Texas, Greg Abbott, acrescentou à ladainha um chamamento à necessidade óbvia de mais cuidados psicológicos para jovens numa sociedade viciada em violência e brutalidade.

Desta vez, a trapaça retórica dos conservadores pode não ter colado. Em vez de se calarem, como no passado, parlamentares, líderes religiosos e estudiosos da violência aceitaram a tese do senador, mas responderam que é hora, sim, de politizar o debate sobre a violência armada contra civis indefesos que aprofunda a divisão e ameaça a própria sobrevivência dos Estados Unidos como sociedade civilizada.

A responsabilização da saúde mental dos americanos pelos assassinatos em massa, que é obviamente parte da solução, pode melhorar e produzir boas consequências. “Uma pessoa que mata outra tem um problema mental, e ponto final. O governo precisa encontrar uma maneira de focar no desafio de saúde mental e fazer algo a respeito”, afirmou Abbott. O mesmo argumento foi repetido por políticos republicanos e até mesmo pelo ex-presidente Donald Trump em discurso no último fim de semana à convenção nacional da Associação Nacional do Rifle, o poderoso lobby das armas.

A hipocrisia desses políticos, a começar pelos texanos, está nos números.

O Texas é lanterninha entre os 50 Estados em investimentos em cuidados com saúde mental, segundo a Mental Health America, uma organização nacional que se dedica ao tema. Por quê? Parte da resposta está na limitação, no Texas e em outros Estados conservadores, do provimento de serviço de saúde mental nos seguros médicos existentes. E não por falta de recursos. O governo federal ofereceu e continua a oferecer centenas de milhões de dólares aos Estados para a expansão dos cuidados médicos à saúde mental. Trata-se de tema preferencial do governador do Texas, que há anos proclama suas verdades sobre o assunto.

Saúde mental e violência armada estão novamente em evidência. Mas a confluência dos dois temas dificilmente produzirá as consequências desejadas e recomendadas pelos especialistas, pois fazê-lo requer uma preocupação genuína com o bem-estar dos grupos sociais vitimados por tragédias como as de Uvalde – uma preocupação que não está no radar dos conservadores, empenhados cada vez mais em estratégias de divisão e polarização da sociedade em grupos que não se falam e, de fato, não parecem fazer parte da mesma nação.

Mas nada disso é inevitável. A ativista Yolanda Renee King, 14 anos, neta do reverendo Martin Luther King, o mártir do movimento dos direitos civis morto a tiros por um supremacista branco em 1968, chamou sua geração à luta em artigo no Washington Post. “Eu não quero mais entrar na escola com medo”, escreveu Yolanda, que está na oitava série. “Quero ser uma adolescente. Li muitos dos discursos e sermões do meu avô. Um deles é relevante na esteira desta tragédia (de Uvalde): ‘Com fé, temos de tirar dessa montanha de desespero uma pedra de esperança’”. Yolanda conta que em anos recentes dedicou-se a usar o nobre legado de seu avô para encorajar sua geração a se levantar e exigir mudança, especialmente quando a mudança é difícil. A voz dos enlutados, lembrou a jovem, caiu nos ouvidos de representantes eleitos que não se importam. Mas ela vê em sua escola e entre seus amigos o potencial para a mudança. “Nas palavras do meu avô, a escuridão não vence o ódio – só o amor pode fazê-lo.”

Nos Estados Unidos, no Brasil e em outras partes, essas palavras talvez soem ingênuas em 2022. Elas soaram ingênuas quando foram ditas décadas atrás por Nelson Mandela, na África do Sul. Mas é essencial lembrar que são essas as palavras que ficaram e que iluminam o caminho.

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