A tentativa de assassinato do ex-presidente Donald Trump no último sábado, em comício na Pensilvânia, trouxe para o centro da campanha à Casa Branca o flagelo das “reality news” ou “reality television” na sua mais trágica expressão: a violência epidêmica numa nação onde circulam 500 milhões de armas de fogo, mais de uma por cada um de seus 340 milhões de habitantes, e um número incontável que pessoas com problemas mentais e fácil acesso a elas.
Não obstante as teorias conspiratórias que pipocaram à esquerda e à direita, nos EUA e no resto do mundo, sugerindo que tudo não passou de uma encenação, o presidente Joe Biden, o FBI e os veículos da grande imprensa americana críticos de Trump trataram o ataque como fato.
No imediato pós-atentado, o episódio beneficia Trump, pois reforça a tese do ex-presidente segundo a qual ele é um político perseguido. Gera, ao mesmo tempo, simpatia e solidariedade entre eleitores indecisos, e aumenta a capacidade da campanha conservadora de continuar a arrecadar milhões de dólares, essencial depois da Convenção Nacional Republicana, que termina amanhã em Wisconsin com a consagração de Trump como candidato. Permite ainda que ele entre acelerando na reta final que levará à votação de 5 de novembro.
O episódio é bom para Trump também porque tende a reduzir a pressão entre seus rivais democratas para substituir Biden, de 81 anos, três mais do que o contendor, na chapa do partido. O raciocínio é que, se é para perder, que Biden perca e os líderes emergentes mais moços, como a governadora Gretchen Whitmer, de Michigan, e os governadores Gavin Newsom, da Califórnia, e Josh Shapiro, da Pensilvânia, todos na faixa dos 50 anos, poupem-se para 2028.
A violência política armada contra líderes não é exclusiva dos EUA. Mas acontece com preocupante frequência na mais antiga e maior democracia constitucional do planeta. Somam 14 os ataques contra presidentes, ex-presidentes ou candidatos à Casa Branca. Quatro morreram no exercício do poder: Abraham Lincoln e James Garfield, no século 19; William McKinley e John F. Kennedy, no século passado. Os presidentes Andrew Jackson, Theodore Roosevelt, Franklin Delano Roosevelt, Harry Truman, Gerald Ford, Ronald Reagan, Bill Clinton e George W. Bush também foram alvos.
A conta chega a 14 quando se incluem Robert F. Kennedy, irmão do presidente, assassinado em evento de campanha, e George Wallace, governador democrata segregacionista do Alabama, que ficou paraplégico depois de ser atingido em evento de sua campanha presidencial. A lúgubre soma sobe a 15 quando se inclui o assassinato do reverendo negro Martin Luther King Jr., morto a tiros em 1968, o mesmo ano em que Robert Kennedy perdeu a vida. A menção a King se justifica por ser ele uma espécie de santo cívico dos EUA e único americano celebrado com um feriado nacional exclusivo, na terceira segunda-feira de janeiro.
O atentado contra Trump é único, porém: é o primeiro do gênero na era das mídias sociais, que tiveram os efeitos contraditórios de democratizar o acesso à informação sem filtros e dividir as sociedades em guetos políticos irredutíveis que levam ao colapso do centro e ameaçam a democracia nos países onde ela está mais enraizada. Um bom comunicador, que emergiu para a política a partir do reality show The Apprentice, o ex-presidente navega bem nas águas turvas da realidade paralela que moldou para sua autoglorificação, sem quaisquer preocupações com as verdades factuais, a não ser aquelas que resultam em dólares e realimentam seu gigantesco ego. E que se danem as instituições.
Como tudo isso impactará as eleições? O imediato pós-atentado, incluindo a Convenção Republicana que termina amanhã, favorece Trump. Mas faltam ainda a Convenção Nacional Democrata, que começa em 19 de agosto, e três meses e meio até o pleito. Tempo suficiente em política para viradas e reviradas, dependendo do que fizerem os candidatos e seus coadjuvantes. A escolha para vice de Trump do jovem senador de Ohio, J. D. Vance, que já foi desafeto do ex-presidente, não muda o panorama.
Com os dados da realidade de hoje, a única previsão possível é a que fez Peter Baker, correspondente do New York Times na Casa Branca, em artigo reproduzido pelo Estadão na segunda-feira. O atentado aprofundará a polarização numa nação rachada e sem rumo e alimentará mais conflito e instabilidade política e menos diálogo e acomodação de posições divergentes.
Imagens icônicas do ataque, como a que mostra o rosto ensanguentado do ex-presidente depois de ser alvejado de raspão, punho cerrado em riste, com uma bandeira americana no alto, evocam a cena dos heróis da batalha de Iwo Jima, no Pacífico, na 2.ª Guerra Mundial, hasteando a bandeira, e certamente serão usadas para tentar alterar a imagem de um Trump que nunca escondeu seu desprezo pelos veteranos de guerra, especialmente os que morreram ou caíram prisioneiros do inimigo, todos “perdedores”, segundo ele. Isso é pecado capital no enredo que republicanos e democratas venderam ao país e ao resto do mundo depois da 2.ª Guerra para projetar liderança e promover seus interesses. Resta saber se esse filme acabou.
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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ EM WASHINGTON