A perspectiva de perder a disputa pela Casa Branca no próximo 5 de novembro para uma mulher descendente de imigrantes bem-sucedidos – uma cientista indiana e um economista jamaicano – é mais do que a arrogância doentia do ex-presidente Donald Trump consegue processar.
Faltando menos de três semanas para a votação, a vice-presidente Kamala Harris aparecia à frente de Trump por pequenas margens na maioria das pesquisas nos cinco ou seis Estados que devem decidir a eleição.
Se Harris vencer na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, onde está na dianteira, ficará difícil para Trump suplantá-la na soma dos 270 votos do colégio eleitoral presidencial que decide a eleição.
Por essa razão, Trump preparou caminhos para garantir-lhe a vitória, mesmo que por fraude, como tentou em 2020 para negar a eleição ao presidente Joe Biden, que o derrotou por margens confortáveis na contagem dos sufrágios populares e dos votos do colégio eleitoral presidencial, herança do passado preservada porque dá mais peso aos votos dos Estados menores em população.
Os democratas estão alertas e mobilizados para frustrar as tentativas trumpistas de vencer na marra. Contam, para isso, com o apoio declarado de mais de duas centenas de ex-altos funcionários de administrações conservadoras, a começar pela ex-deputada republicana Liz Cheney, que foi a terceira da hierarquia republicana na Câmara dos Representantes, copresidiu uma comissão parlamentar de inquérito que investigou tentativas de fraude de Trump e hoje percorre o país alertando para o perigo da volta do ex-presidente ao poder.
A iniciativa de Liz Cheney é apoiada por seu pai, Dick Cheney, o hiperconservador ex-vice-presidente do republicano George Bush, e por vários generais de quatro estrelas que ocuparam posições de comando em administrações republicanas e democratas e veem numa volta de Trump um perigo real para a autoridade internacional da democracia americana e o prestígio que ela confere ao país.
Ex-promotora pública, ex-secretária de Justiça da Califórnia por dois mandatos e ex-senadora do maior Estado do país, Harris tem demonstrado que os arroubos de Trump não a intimidam e se mantido na ofensiva. Depois de ter levado a melhor sobre Trump, sem dificuldades, no primeiro debate televisionado que teve com ele, prontificou-se a encontrá-lo novamente, mas o ex-presidente correu da raia.
Manter o partido democrata unido em torno de sua candidatura será essencial não apenas para ganhar as eleições, mas também para garantir a posse e a tranquilidade necessária para deslanchar seu governo executando os planos que já apresentou para manter a economia no atual curso de crescimento sustentado, com baixa inflação e amplo espaço para estimular investimentos inovadores, que renovem a economia e abram caminhos para atividades estimulantes e criativas.
O fato de Harris ser uma progressista cuidadosa, guiada antes e acima de tudo por sua formação e carreira dedicadas ao primado da lei, sugere que ela trilhará um caminho de centro frente a uma direita desarticulada pelo furacão Trump.
O cenário internacional será de aprendizado ante realidades desafiantes, mas sob a influência positiva de tutores como o presidente Joe Biden e o ex-deputado, ex-chefe do gabinete presidencial, ex-diretor da CIA e ex-secretário de Defesa Leon Panetta, californiano como Harris. E não faltam novos talentos para ajudar a encaminhar uma nova administração democrata sob a liderança de Harris.
Supondo, como suponho, que os americanos romperão mais uma barreira histórica alçando a primeira mulher à presidência do país, o maior desafio para Harris será a condução das relações internacionais dos EUA ante a ascensão da China, o declínio da Rússia e a rearrumação em curso do tabuleiro internacional. É uma área delicada, na qual a futura presidente tem menos vivência, mas, uma vez eleita e empossada, terá amplo capital de conhecimentos e talentos à disposição para conduzir o país a bom porto.
Na vizinhança próxima, Harris encontrará um Canadá complicado pelo esgotamento político da administração de Justin Trudeau e um México potencialmente renovado pela chegada da primeira mulher à presidência. Na América do Sul ela terá uma Venezuela rumo ao buraco sem fim escolhido pelo chavismo e uma Argentina perdida no despreparo de seu líder em busca de algo que os próprios argentinos têm dificuldade de descrever. Quanto ao Brasil, o melhor panorama é, talvez, que continue a ser observado, na esperança de que suas esgotadas lideranças (de esquerda e de direita) renovem-se e, com o tempo, vislumbrem um caminho virtuoso de convívio democrático, capaz de mobilizar e distribuir ativos e talentos que não faltam ao País. Em outras palavras, um país com os ativos sociais, geográficos, diplomáticos e culturais do Brasil não será ajudado se não desfizer os nós que se deu desde a redemocratização e que cabe somente a nós desfazer, se quisermos trilhar um caminho de paz e prosperidade.
*
JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ EM WASHINGTON