Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Opinião|No Rio Grande do Sul, reconstruir melhor


A tragédia deveria inspirar o País a dotar-se de capacidade institucional para responder a calamidades

Por Paulo Sotero

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

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O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

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Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

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Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

*

JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ NOS EUA. E-MAIL: PAULOSOTEROMARQUES@GMAIL.COM

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ NOS EUA. E-MAIL: PAULOSOTEROMARQUES@GMAIL.COM

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ NOS EUA. E-MAIL: PAULOSOTEROMARQUES@GMAIL.COM

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ NOS EUA. E-MAIL: PAULOSOTEROMARQUES@GMAIL.COM

A iniciativa do governo de nomear uma autoridade federal para coordenar sua assistência ao Rio Grande do Sul foi um bom primeiro passo. Deve ser seguido de outros e levar à institucionalização das atividades de socorro às milhares de vítimas da catástrofe sem precedentes que se abateu sobre os gaúchos e que, infelizmente, a crise climática deve continuar a produzir em nosso país e na vizinhança.

A experiência dos Estados Unidos e de outros países mostra a eficácia das atividades voltadas a socorrer e abreviar o sofrimento dos refugiados e desalojados das grande tragédias. Nessas ocasiões, aqui entra em ação a Federal Emergency Management Agency (Fema), uma unidade do Departamento de Segurança Interna com 20 mil funcionários, que podem chegar a 50 mil, quando necessário. Eles estão distribuídos entre a sede em Washington e em dez escritórios regionais e programáticos. Operam com um orçamento de US$ 30 bilhões anuais e têm autoridade para requerer e obter ajuda de outras agências federais e estaduais, bem como das polícias e das Forças Armadas.

A Fema nasceu de respostas isoladas a grandes desastres naturais a partir de 1803. O presidente Jimmy Carter propôs e o Congresso aprovou a criação da agência na segunda metade dos anos 1970. Respeitada pela população, a Fema nem sempre teve um desempenho estelar. Seu pior momento aconteceu duas décadas atrás.

O então presidente George W. Bush tratou a agência como uma sinecura e confiou-a um correligionário republicano, o advogado Michael DeWayne Brown, um especialista em cavalos árabes que nada sabia sobre a administração de calamidades. Nas primeiras horas após a chegada do Furacão Katrina na região de Nova Orleans, em agosto de 2005, Bush apareceu na televisão e disse que seu amigo “Brownie” cuidaria de tudo e que a população não se preocupasse. O despreparo de “Brownie” ficou logo evidente ante a ferocidade do furacão categoria 5, até hoje entre os cinco maiores dos Estados Unidos.

A demora na tomada de decisões pela Fema custou dezenas, talvez centenas das 1.392 vidas ceifadas pela catástrofe. Brown foi substituído no mês seguinte e a Fema foi reorganizada e fortalecida, tornando-se uma agência de especialistas no combate a desastres, de incêndios florestais a furacões e enchentes, passando por colapsos de pontes e outros equipamentos de infraestrutura que mostram a idade em várias partes do país.

O tamanho já excessivo do setor público no Brasil poderia ser um argumento contra a criação de uma agência dedicada a responder a catástrofes. Mas esse é um argumento defeituoso. A nova repartição, além de servir a um propósito específico, poderia absorver pessoal e orçamentos de outras áreas. E, cumprindo bem as tarefas, certamente ganhará a gratidão e a simpatia da população.

Vendo na televisão as tristes imagens do dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, em recente visita ao Brasil, consolei-me na memória de queridíssimos amigos gaúchos, dois dos quais há muito partiram: o jornalista e escritor Josué Guimarães, sua Nídia, os filhos, Rodrigo e Adriana, e a gata Chaimite. Conheci e convivi com Josué e sua família em Portugal em meados dos anos 1970. Ele era correspondente do Correio do Povo e eu, um jovem ainda em início de carreira e de casamento, correspondente da revista Veja em Lisboa.

Nídia e Josué abriram sua casa em Cascais para Eloisa e para mim. Lá passamos sábados e domingos inesquecíveis, confortados pelas receitas deliciosas que Nídia preparava e por doces divinos, como o de mamão com cal virgem e a ambrosia. A primeira viagem de nosso primogênito, Pedro, nascido em julho de 1977, foi a Porto Alegre, para onde Nídia e Josué haviam retornado. Uma foto preto e branco de Pedrinho conosco, tirada por Josué num mirante da cidade, tem lugar especial na paredes de nossos afetos, em nossa casa, em Maryland. Em 1980, quando mudei-me para os Estados Unidos, o casal providenciou para que eu ficasse os primeiros dias hospedado com Clarissa, a filha do grande Erico, e seu marido, David, em McLean, um subúrbio de Washington em Virgínia. E assim aconteceu.

Josué, que Nídia chamava afetuosamente de “Formosura”, era um homem bonito, inteligente e engraçado. Deixou vários livros, entre os quais os mais conhecidos talvez sejam os da trilogia A Ferro e Fogo, sobre uma briga religiosa entre imigrantes alemães que entrou para a História como a Revolta dos Muckers.

Gauchíssimo, Josué gostava de contar vantagem sobre o Rio Grande do Sul. “Paulo, no Brasil, o Rio Grande do Sul tem história. O resto tem geografia”, disse-me ele certa vez. Pois é, Josué, a crise climática trouxe a geografia rudemente de volta ao Estado e testará seu povo durante anos. Pessoalmente, aposto na coragem dos gaúchos ante a adversidade. Gente de fibra, eles escolheram ser brasileiros. Agora, precisam da solidariedade consequente do País e do amparo de boas políticas públicas. Assim apetrechados, saberão reconstruir as áreas devastadas pelas enchentes de maio de 2024 e superarão os efeitos da catástrofe renovados pelo sofrimento, mas melhores e mais resilientes.

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