Recordista em anos recentes em oportunidades perdidas para afirmar os valores democráticos que fundamentam a Constituição de 1988, o Brasil terá em menos de três meses mais uma chance para mostrar ao mundo que somos uma democracia de verdade ou, alternativamente, omitir-se diante de uma nova tentativa de golpe nas Américas. Desta vez, a ameaça não virá do nosso entorno latino-americano. Tendo falhado duas vezes no mês passado na Venezuela, a despeito dos esforços de diplomatas e de militantes honrados do Partido dos Trabalhadores para fazer o certo ante a grosseira fraude eleitoral orquestrada pelo ditador Nicolás Maduro, o presidente terá agora que se posicionar com clareza ante a crise eleitoral que se desenha nos Estados Unidos.
Em contrate com o caso caraquenho, não poderemos ignorar a crise nem interferir nela propondo a realização de uma nova eleição, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez, espantosamente, na Venezuela, jogando no lixo a regra de ouro de não intervir em assuntos internos de outras nações, a não ser em circunstâncias excepcionais reconhecidas pela Organização das Nações Unidas.
O ex-presidente Donald Trump já afirmou publicamente mais de uma vez que os votos apurados nas eleições que se realizam no próximo 5 de novembro não valerão se houver quaisquer dúvidas sobre a lisura do pleito. Fomentar essas dúvidas é tarefa à qual ele e seus aliados têm-se dedicado na meia dúzia de Estados que devem decidir a disputa: Arizona, Geórgia, Nevada, Pensilvânia, Wisconsin e Michigan.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a norma eleitoral é comandada por lei federal e gerida por um braço especializado do Poder Judiciário – o Tribunal Superior Eleitoral –, os EUA têm 50 sistemas eleitorais, um por Estado. Isso torna mais fácil criar dúvidas e procurar melar o jogo. Foi o que Trump tentou fazer em 6 de janeiro de 2021, quando uma turba de aliados por ele convocada a Washington invadiu a sede do Congresso, numa violenta, criminosa, mas vã tentativa de impedir a proclamação da vitória de seu desafiante democrata, Joe Biden, pelo colégio eleitoral presidencial.
Esse colégio é uma relíquia da fundação do país. Tem 538 votos, correspondentes à soma das 435 cadeiras da Câmara dos Representantes, 100 do Senado e 3 do Distrito Federal que abriga Washington, a capital do país. Sua função é oficializar a votação popular dando pesos diferentes aos Estados de acordo com a sua população.
Uma diferença importante em relação à tentativa de golpe de 2021 é que agora os democratas estão preparados e mobilizados para contestar cada movimento de Trump e seus conspiradores. Outra é que a desistência de Biden à campanha pela reeleição e a rápida aceitação pelos democratas de sua vice, Kamala Harris, como cabeça da chapa presidencial, junto com o governador de Minnesota, Tim Walz, reanimaram não apenas os eleitores do partido, mas também republicanos moderados e independentes. E teve um efeito especialmente forte entre as mulheres, os jovens e os descendentes de minorias raciais, como a própria Kamala Harris, que é filha de pai caribenho e mãe indiana. Pesquisas confiáveis divulgadas na véspera da Convenção Democrata em curso em Chicago desde segunda-feira dão entre 3 e 5 pontos de vantagem para Kamala sobre Trump na maioria dos Estados-chave. A confirmar-se essa tendência, o cenário é de vitória provável de Harris seguida de contestação dos resultados por Trump.
Nesse caso, o que fará o governo brasileiro? Subirá no muro e nele se equilibrará até que os americanos resolvam a disputa, o que pode demorar semanas ou meses? Aproveitará para vazar comentários sobre a decadência americana, como fazem intelectuais brasileiros que mandam os filhos estudarem nos EUA e as mulheres às compras em Miami e Nova York?
Se Lula hesitar e demorar para enviar cumprimentos ao vencedor – seja à primeira mulher a chegar à Casa Branca, seja a Trump –, haverá consequências políticas em casa e para as relações de seu governo com os países vizinhos que fizerem escolhas diferentes das de Brasília.
Para complicar a resposta, o presidente do Brasil parece acreditar que tem uma capacidade de liderança regional e internacional maior do que a que de fato possui, o que aumenta as chances de falar mais do que tem a dizer, como testemunhamos em semanas recentes.
Esclareço que tenho cavalo nessa corrida. Moro na região metropolitana de Washington desde 1980 e sou cidadão dos EUA há 15 anos. Esta será minha quarta eleição presidencial. Votei para Barack Obama em 2012, para Hillary Clinton em 2016, para Joe Biden em 2020, e votarei com orgulho e esperança para Kamala Harris em novembro. Por quê? Porque eles e os candidatos democratas para o Senado, a Câmara dos Representantes e demais postos eletivos em jogo são os que melhor representam minhas ideias e meus interesses como proprietário da casa onde moro com minha mulher, Eloisa, e onde cresceram nossos quatro filhos, que nos deram sete netos. Ou seja, votarei em Kamala Harris como marido, pai, avô, vizinho, contribuinte e jornalista aposentado com mais de meio século de experiência na profissão, que continuo a exercer como colaborador deste jornal.
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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ NOS EUA