Ainda que tomada a contragosto, a decisão do presidente Joe Biden de encerrar sua campanha à reeleição no último domingo e endossar a vice-presidente Kamala Harris para barrar o retorno do ex-presidente Donald Trump à Casa Branca injetou novo ânimo entre os democratas e tornou imprevisível o desfecho da disputa presidencial.
Falta quase um mês até a convenção do Partido Democrata em Chicago, de 19 a 22 de agosto, tempo suficiente para Kamala escolher um vice, arregimentar assessores e começar a executar sua estratégia de campanha com a ajuda dos aproximadamente US$ 100 milhões em fundos eleitorais que herdará de Biden. Os grandes doadores do Partido Democrata indicaram que contribuirão para a campanha de Kamala.
Sua escolha como vice de Biden em 2020 foi um tributo póstumo ao filho mais velho do presidente, Beau, que morreu em 2015 vítima de um tumor cerebral. Kamala e Beau se aproximaram quando ambos foram secretários de Justiça de seus Estados, Califórnia e Delaware.
Presumindo que unirá o partido em torno de sua candidatura, a vice-presidente terá tempo suficiente para explicar a que veio e apresentar uma visão propositiva do futuro, que vá além do enredo surrado usado por Biden, que se resumiu em insistir na ameaça real que Trump representa para a democracia.
Se Kamala não passar no crucial teste de liderança e for mal nas pesquisas, o partido terá tempo para trocar a chapa em convenção aberta, como sugeriu na semana passada o respeitado ex-estrategista eleitoral James Carville, que ajudou a eleger e reeleger Bill Clinton. Esse parece ser o cálculo também do ex-presidente Barack Obama. Ele prestou a devida homenagem e elogiou o corajoso gesto de Biden, seu vice-presidente por oito anos. Mas o fez sem endossar Kamala Harris.
A nova candidata democrata tem farta escolha de vice. O banco de reservas da política nos EUA é amplo, tem qualidade e está em constante renovação. Sentam-se nele os governadores de Michigan, Gretchen Whitmer, da Califórnia, Gavin Newsom, da Pensilvânia, Joshua Shapiro, da Carolina do Norte, Roy Cooper, de Kentucky, Andy Beshear, os senadores Cory Booker, de Nova Jersey, Raphael Warnock, da Geórgia, e o ex-astronauta Mark Kelly, do Arizona, entre outros.
Num enredo ideal, Kamala atacará Trump contrastando seu sofrível histórico presidencial com o de Biden. Os desastres do republicano incluem a articulação e incitação de um ataque criminoso feito por seus seguidores contra a sede do Congresso, em janeiro de 2021, numa vã tentativa de sabotar a contagem dos votos eleitorais dos Estados, que oficializa o resultado das eleições. Outra calamidade foi a maneira irresponsável como tratou da pandemia de covid, resultando na morte evitável de centenas de milhares dos mais de 1 milhão que sucumbiram à doença nos EUA.
“O legado do presidente Biden não tem paralelo na história moderna dos EUA, mesmo comparado ao de presidentes que serviram por dois mandatos”, contrastou Kamala. De fato, os 52 anos de serviço público de Biden podem ser igualados por poucos de seus contemporâneos. Entre as heranças de Biden como presidente estão um plano de resgate da economia após o trauma econômico causado pela pandemia da covid; uma lei bipartidária que autorizou investimentos recordes de US$ 461 bilhões para a construção e renovação de pontes, portos e outras obras de infraestrutura, num total de 60 mil projetos; a nomeação da primeira juíza negra para a Suprema Corte; um programa de US$ 300 bilhões em subsídios à indústria de circuitos integrados; e a imposição de um teto de preços para os remédios mais usados por idosos.
Depois de realizar um pouso suave, após um período de forte alta de preços, a economia é hoje a mais próspera entre as nações desenvolvidas, com crescimento sólido, e tem a taxa mais baixa de desemprego em meio século e o declínio de uma persistente inflação alimentada pelos gigantescos gastos públicos da era da covid, agora finalmente no caminho da meta de 2% ao ano.
Alguns historiadores consideram a presidência de Biden como a terceira mais produtiva dos últimos cem anos, superada apenas pelo New Deal de Franklin Delano Roosevelt, na década de 1930, e a guerra contra a pobreza e a desigualdade liderada por Lyndon Johnson, nos anos 1960.
Mesmo antes de o panorama estar definido após a retirada de Biden, “a bem do partido e do país”, como ele escreveu, já no domingo surgiram sinais de pânico na campanha de Trump. Primeiro, o ex-presidente e seus asseclas argumentaram que, se Biden não tem condições de continuar como candidato à reeleição, deveria renunciar imediatamente à Casa Branca. O argumento, obviamente ignorado, mostrou que Trump, de 78 anos, preparou-se para medir forças com um político três anos mais velho do que ele e em claro declínio. Terá agora que enfrentar uma mulher com sólida carreira de promotora pública, secretária de Justiça e senadora do mais populoso Estado do país, conhecida por não ter papas na língua. Talvez por isso, o ex-presidente tenha começado a dar sinais de que não aceitará um debate com a vice-presidente, que, se eleita, entrará para a História como a primeira mulher a governar a maior potência do mundo.
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JORNALISTA, PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, FOI CORRESPONDENTE DO ‘ESTADÃO’ EM WASHINGTON