Meio século atrás, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, escapou de um processo de impeachment por abuso de poder renunciando ao cargo, depois de orquestrar o maior escândalo de corrupção da história do país e vencer uma disputa à reeleição. Fosse menos paranoico, Nixon teria provavelmente entrado para a História como um grande líder, que encerrou a guerra do Vietnã e estabeleceu relações diplomáticas com a China. O ex-presidente Donald Trump, candidato favorito dos republicanos a voltar à Casa Branca em novembro do ano que vem, enfrenta um desafio maior e mais complexo. Ele não reconheceu a vitória de seu sucessor, o democrata Joe Biden, nas eleições de 2020. Alheio às regras da democracia, armou uma sublevação no Capitólio, a sede do Congresso, em janeiro de 2021, e mergulhou o país numa crise sem precedentes.
Ante o fracasso da manobra, Trump conspira desde então, sem disfarces, para melar o próximo pleito e alcançar seu objetivo, pouco importando se isso custará a destruição das instituições democráticas do país.
As pesquisas de opinião mostram Trump e Biden empatados, faltando 16 meses para a votação. Mas o atual presidente leva vantagem na política. E esta deve-se ampliar depois que o promotor independente Jack Smith anunciou, na terça-feira passada, quatro graves acusações criminais contra o ex-presidente, todas relacionadas com corrupção eleitoral. Com voz firme e calma e sem se exaltar, Smith exortou os americanos a lerem as 45 páginas da peça de acusação e prometeu conduzir o processo de forma eficiente e levá-lo a julgamento meses antes do início da campanha presidencial.
Esse processo é separado e distinto dos que Trump já enfrenta na Justiça federal em Manhattan, na Georgia e na Flórida por crimes de pagamento de propina, tentativas de falsificar resultados eleitorais (processo no qual ainda não foi indiciado) e retenção ilegal de documentos oficiais, respectivamente. No novo caso, potencialmente mais danoso, o ex-presidente é acusado de promover uma ampla conspiração para invalidar a certificação e proclamação dos resultados das eleições de 2020 pelo Congresso.
Smith, promotor federal cuja vasta experiência profissional estende-se à Corte Internacional de Justiça da ONU, onde serviu antes de assumir sua tarefa atual de promotor independente, mostrou seu extenso conhecimento da lei e enorme talento pela maneira como organizou sua equipe e o rigor ético com que protegeu e continuará a proteger a missão. Smith fala pouco, não parece preocupado com as luzes da ribalta e projeta uma forte imagem de equilíbrio e seriedade. Até agora, fez apenas dois pronunciamentos públicos.
As testemunhas que arrolou mas não identificou publicamente fazem parte do grupo de auxiliares e ex-funcionários que se associaram à causa trumpista para surrupiar as eleições de 2020. Entre estes, o mais notório no Brasil é o prefeito de Nova York e ex-promotor republicano no distrito federal de Manhattan Rudy Giuliani.
Entre as acusações que pesam contra Trump estão a violação de leis adotadas na era da Reconstrução, no período do pós-Guerra Civil (1860-1865), com o objetivo de punir quaisquer pessoas que “conspirem para ferir, oprimir, ameaçar e intimidar pessoas no que tange ao seu direito de votar e ter seu voto contado”, no exercício de um direito garantido pela Constituição e a lei. Mais do que isso, Smith acusou Trump de perpetrar uma das maiores e mais sensacionais fraudes da história dos Estados Unidos, com acusações falsas, alimentadas por mentiras e animadas pela “sede de poder”. Segundo Smith, Trump tinha conhecimento de que suas acusações eram falsas, mas as fez, de qualquer forma, “para criar uma atmosfera nacional de intensa desconfiança e raiva para solapar a fé pública na administração de eleições”.
Os elementos das acusações apresentadas por Smith eram conhecidos. O mérito da peça de indiciamento foi juntar numa única narrativa as intrigas alimentadas por Trump entre o dia da eleição, em novembro de 2020, e o da posse de Biden, em janeiro de 2021, para reverter a qualquer custo o resultado das urnas.
Previsivelmente, a campanha de Trump reagiu em tom de estudada indignação e fúria. Numa nota a seus apoiadores, o ex-presidente os instruiu a não acreditar em nada que venha de Smith. “Por que eles não disseram isso dois anos e meio atrás?”, indagou Trump em tom de falsa indignação, comparando o comportamento da promotoria federal com os usados na “Alemanha nazista e no regime comunista da União Soviética”.
Exageros e ofensas assim são bem ao gosto de Trump e costumam fazer efeito na arena política. Deve-se ter em conta, também, que o ex-presidente não perdeu prestígio ou influência política junto de seus fiéis eleitores desde que foi derrotado por Biden e recusou-se a aceitar o resultado. Mas o desafio de Trump será bem mais complicado num julgamento em tribunal federal no Distrito de Columbia, onde apenas 5% dos eleitores registrados são republicanos, e a maioria é formada por negros e hispanos que votam com os democratas.
*
JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE DO WILSON CENTER, EM WASHINGTON