Num momento em que o Brasil e o mundo discutem os limites da liberdade de expressão e quais deveriam ser os direitos e deveres das redes sociais, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é particularmente elucidativa a propósito de quais são efetivamente esses direitos e deveres no ordenamento jurídico nacional. Foi a primeira vez que a Corte julgou a legalidade da moderação ativa por parte de uma plataforma, ou seja, a remoção de um conteúdo por iniciativa própria, independentemente de notificação judicial ou extrajudicial.
Em 2021, o médico Paulo Porto Melo divulgou em seu canal no YouTube vídeos incentivando o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19. Os moderadores da plataforma removeram o conteúdo. Melo requereu à Justiça o seu restabelecimento e a condenação do Google, dono do YouTube, alegando cerceamento à liberdade de expressão, dado que não teria cometido nenhum ato ilegal. Segundo ele, o Marco Civil da Internet proíbe a remoção de conteúdos sem ordem judicial. Alegou ainda que seria vítima de shadowbanning (literalmente “banimento às sombras”), ou seja, a manipulação dos algoritmos para reduzir a visibilidade de um usuário. As três instâncias negaram provimento.
A decisão da Justiça é exemplar e dissipa muita confusão sobre a responsabilidade das redes. Elas não são como as mídias tradicionais editorializadas, que controlam seu conteúdo e respondem totalmente por ele, nem são canais de comunicação totalmente isentos, como redes de telefonia ou correios, mas têm uma responsabilidade intermediária.
O art. 19 do Marco Civil determina que a responsabilidade por danos causados por conteúdos veiculados nas redes é do seu produtor, e a rede só se torna corresponsável se mantiver o conteúdo após ter sido notificada pela Justiça de sua ilegalidade. O art. 21 estabelece a exceção a essa regra. A rede será também corresponsável, mesmo sem ordem judicial, se negligenciar a notificação de alguma pessoa que teve sua privacidade violada pelo produtor do conteúdo.
Isso não significa que as redes não possam remover conteúdos, mesmo sem serem notificadas e mesmo que esses conteúdos não sejam ilegais. Esse direito é de ordem contratual, estabelecido pelos termos de uso pactuados com os usuários. No caso, a questão não é se é ou não ilegal promover o uso de cloroquina, mas se a promoção viola os termos de uso do YouTube. E viola: a “política de informações” da plataforma veda expressamente essa promoção.
Assim como o contrato determina os limites do usuário, ele também impõe limites ao arbítrio da rede. Se um usuário tem conteúdos removidos, for prejudicado por isso e provar que essa remoção viola os termos da própria rede, ele pode ser ressarcido. A regra se aplica ao shadowbanning. As redes não podem reduzir artificialmente o alcance orgânico de algum perfil. Em outras palavras, elas têm um dever de neutralidade para com todos os usuários. Os termos de moderação de qualquer rede podem ser quão restritivos ela queira, muito além das restrições legais à liberdade de expressão, desde que sejam aplicados com isonomia.
A decisão do STJ é particularmente relevante no momento em que os legisladores debatem novas regulações das redes e em que corre no Supremo Tribunal Federal uma ação questionando a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil. As redes sociais no Brasil não são, como diz o chavão, terra sem lei. O Brasil criou, através de um processo longo, democrático e diligente, um arcabouço para o meio digital que busca um equilíbrio entre todos os interesses envolvidos: a liberdade de expressão dos usuários, os direitos de cidadãos ofendidos por ela e as condições de responsabilização das redes, sem terceirizar a elas o poder de censura do Estado nem impedi-las de moderar seus conteúdos, desde que o façam conforme os padrões pactuados com seus usuários, aplicados de maneira igual a todos. É legítimo advogar alterações no Marco Civil, mas elas deveriam ser promovidas com a mesma prudência que pautou a sua construção, harmonizando ainda mais esse equilíbrio, e não o rompendo.