Estudiosos da ciência política apontam Adhemar de Barros como divisor de águas no Brasil em múltiplos sentidos. O que mais se popularizou e lhe rendeu apelido foi o de político que rouba, mas faz. Mas sua passagem pelo governo do Estado de São Paulo ficou marcada por muitos outros elementos, que fizeram escola. O homem público simplório, generoso, bondoso, realizador das obras gigantes, faraônicas, pelas quais o povo teria de ficar eternamente grato. Nascia o populismo à brasileira.
O personalismo adhemarista, novo modelo de marketing político, foi concebido a partir da idealização do grande líder popular tosco, altruísta, assemelhado a um messias, elaborando-se, a partir desta concepção personificada carismática, todo um jogo de propaganda visando a relativizar eventuais desvios de conduta diante das contraprestações oferecidas pelo salvador da Pátria. Para Adhemar, o Estado deveria tudo prover inesgotavelmente, distribuindo favores e empregos, escancarando em seus discursos o clientelismo assistencialista.
Passamos por Jânio Quadros e sua vassourinha, Collor, o caçador de marajás, Bolsonaro, o mito, e, mesmo sendo nosso país uma República democrática, apesar de termos assinado a Convenção da OCDE e da ONU, não obstante sermos uma das oito nações subscritoras do Pacto dos Governos Abertos em 2011, apesar dos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade e publicidade, que brotaram da Constituição de 1988, a lógica adhemarista se percebe ainda viva e presente.
Aterrissando de volta ao Brasil de 1.º de janeiro de 2024, deparamo-nos com a campanha O Brasil é um só povo, lançada pelo governo federal há três semanas. O olhar inaugural é de simpatia à ideia, diante da cisão do País e da polarização que a campanha eleitoral e as eleições evidenciaram, inclusive reconfirmada por recente pesquisa que mostrou que aqueles que votaram em cada um dos dois, mesmo diante de tudo o que se sucedeu após, manteriam sua opção, pois mais de 90% dos entrevistados sinalizaram nesse sentido.
Entretanto, ao observarmos os detalhes do filme e demais conteúdos da campanha de comunicação anunciada sintomaticamente na Conferência Eleitoral do PT a dez meses das eleições municipais, conseguimos perceber que o que se pretende, na verdade, é unir o Brasil em torno de Lula e de seu partido visando às eleições de 2024, apresentados como os supostos salvadores da Pátria. Em matéria de propaganda, tudo é possível – o slogan de uma das primeiras campanhas de Lula foi Xô, Corrupção! Depois disso todos nós sabemos o que se passou.
A ação é paga pelo erário e se confundem os interesses do partido, de Lula e da sociedade, o que é inadmissível. Seria correto e legítimo que a ação publicitária contivesse a assinatura do PT, por promover o partido e seu líder, e fosse por ele financiada, pois o partido é detentor de gordíssima fatia do fundo partidário, bem como do fundo eleitoral, o maior do planeta.
Vale relembrar que Lula reconquistou o poder por força de um movimento social amplo, de uma coalizão de forças democráticas, e não apenas por meio de um único segmento ou do PT. E que Lula exerce um mandato pelo povo, para o povo e em nome do povo, não sendo razoável jamais o exercício personalista do poder. Não é plausível esta ideia: ou Lula ou estamos destruídos; ou o PT ou o fim do mundo. Pode-se falar na união do Brasil sem viés apelativo personalista, que se relaciona, obviamente, à pretensão de perpetuação no poder, incompatível com os cânones republicanos.
Mas a busca indisfarçável de perpetuação no poder não é exclusividade lulista. Na esfera paulistana, por exemplo, na maior metrópole da América Latina, cinco dias após o lançamento da campanha petista, o vereador Milton Leite, do União Brasil, foi eleito com o voto uníssono de petistas e bolsonaristas para, pelo quarto ano consecutivo, continuar ocupando a presidência da Câmara Municipal de São Paulo. Ele é vereador desde 1997.
São sete mandatos consecutivos, já que, apesar de sermos República, não existe o limite constitucional à consecutividade de mandatos no Legislativo que há no Executivo. Penso que impor constitucionalmente limite de dois mandatos seguidos seria inovação positiva. E o presidente articulou mudança na lei municipal para que as reeleições pudessem ocorrer ao infinito. Seria esta regra municipal compatível com nossa Constituição federal e com o ideário republicano da alternância de poder?
No âmbito parlamentar federal, onde viceja o orçamento secreto modernizado, à luz do dia, a quase unanimidade dos parlamentares exercita clientelismo explícito na destinação das emendas parlamentares, restringindo-as a seus redutos políticos para colher votos em troca, o que viola brutalmente o interesse público.
A Constituição de 1988 consagra o princípio dos princípios: da prevalência do interesse público, que deveria ser o grande mantra de todos os integrantes dos Três Poderes. Separação de Poderes com a prevalência republicana do interesse público sem personalismo no exercício do poder. Essa deveria ser a receita do mundo ideal republicano democrático. Mas temos a dicotomia entre os mundos do ser e do dever ser, de todos conhecida. Será utopia irrealizável? Seremos eternos reféns do populismo?
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’