É dado de amplo conhecimento público o crescimento exponencial da violência urbana e da criminalidade, sendo dado de realidade que o crime organizado tem mostrado seu poder de fogo, aterrorizando a sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, carecemos de uma política pública no âmbito da segurança pública e do enfrentamento ao crime organizado, tarefas que os Estados da Federação procuram realizar, mas que exigem coordenação e planejamento estratégico em nível nacional, objeto de proposta de emenda constitucional que prevê diretrizes obrigatórias para os Estados nesses campos.
A população se vê amedrontada por razões justas, e por mais que a ciência penal parta do pressuposto da progressividade do cumprimento das penas, acaba sendo difícil a aceitação social das saídas temporárias dos presos, em especial porque ocasionalmente crimes são cometidos nesses períodos.
No governo anterior, para piorar a situação, houve liberação de acesso às armas para a população durante quatro anos, na contramão de todas as orientações científicas da segurança pública. Mesmo que se tenha estancado essa sangria, é difícil reverter os danos gerados por essa política desastrada.
Agora, em ano de eleições, o populismo penal fica mais forte do que nunca, com proposições draconianas no âmbito criminal, mesmo que na contramão da ciência penal. O que importa para os políticos oportunistas é agradar aos eleitores. O que não se percebe é que o próprio Estado vem fornecendo há tempos mão de obra capacitada e treinada em número abundante para o crime organizado.
O alistamento militar é obrigatório no Brasil e muitos dos alistados prestam o serviço militar. São dezenas de milhares de jovens formados todos os anos pelas Forças Armadas.
Após esse período, dessas dezenas de milhares de jovens de 19 ou quase 20 anos de idade que receberam treinamento militar, de avançado manuseio de armamento bélico lamentavelmente, apenas uma parcela é absorvida pelo mercado de trabalho.
A título de exemplo para ilustrar o raciocínio, no último trimestre de 2023 a taxa de desemprego no Amapá (Região Norte) foi de 14,2%, e o índice nacional de jovens que nem trabalham nem estudam (os nem-nem) segundo o governo federal é de 15,9%.
O crime organizado detectou essa janela de oportunidade, percebeu que poderia dispor de um efetivo significativo, devidamente capacitado para o uso de armas, e assim, oferecendo ganhos financeiros sedutores, cooptou parte desses grupos que cedeu a essas propostas indecentes. É óbvio que a maioria desses jovens não cedeu ao crime.
Mas outros, vivendo necessidades prementes com suas famílias, em situação de vulnerabilidade econômica e social, foram cooptados e engrossaram as fileiras do crime organizado, diante da conjuntura econômica da inação do próprio Estado e da desatualização do ordenamento jurídico.
A norma que prevê o serviço militar obrigatório é a 4.375 de 17 de agosto de 1964. Ou seja, trata-se de entulho autoritário, uma lei imposta pouco mais de quatro meses após o início da ditadura militar no Brasil, que durou 21 anos.
E depois disso, ao longo destes 60 anos, em momento algum se fez reflexão profunda acerca da necessidade de manutenção do alistamento militar obrigatório. Somos vítimas da crônica falta de planejamento em nosso país. As coisas acontecem porque acontecem e se mantêm porque se mantêm sem razões sólidas.
O fato é que se passaram 60 anos daquele momento, e vivemos em uma democracia republicana em que a obrigatoriedade do alistamento militar precisaria necessariamente ser revista, por várias razões. Esta razão que aqui apresento me parece bastante fundamentada. Além disso, o Brasil não é um país belicoso, não se envolve em guerras e não precisa de todo este contingente de alistados num país continental como o nosso.
Como se esses argumentos não bastassem, observo ainda que a manutenção do alistamento e treinamento desses jovens todos durante um ano, além de abastecer significativamente o crime organizado, representa custo estratosférico para os cofres públicos.
Gastos em despesas com os próprios alistados e gastos com os oficiais das Forças Armadas e respectivo aparato necessário ao treinamento militar desses jovens. Se esses recursos fossem poupados, seria possível, por exemplo, diminuir o grave déficit de mais de um terço de brasileiros que não tem acesso ao saneamento básico em pleno ano de 2024.
É necessário que a lógica da responsabilidade fiscal fale mais alto inclusive nesse âmbito, não sendo razoável que permaneçamos reféns de um modelo em virtude de ultrapassadas tradições ou por qualquer outra razão que não seja a prevalência do interesse público.
Penso que uma moderna e evoluída alternativa poderia ser oferecer aos jovens a opção entre o serviço militar e o serviço social, que poderia ser prestado parte no âmbito das próprias Forças Armadas e parte no âmbito do terceiro setor, em organizações não governamentais, experiência que certamente teria potencial altamente humanizador.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’