Procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Opinião|Ética utópica


Evidencia-se o quanto tem sido difícil para quem governa ser transparente, prestar contas, ter atitude republicana ética

Por Roberto Livianu

Os novos tempos líquidos trazem consigo a dificuldade quase invencível de interpretação dos fatos à nossa volta. A névoa espessa e canhestra da mentira – item de fábrica produzido em escala industrial nas narrativas de consultores baratos de plantão, a mando de poderosos – encobre dolosamente a verdade quase inalcançável.

Narrativa pode ser eufemismo de picaretagem arquitetada para o engodo e, depois, espalhada impunemente na internet e pelas redes sociais, na versão atualizada de Goebbels, ministro da propaganda nazista – “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Nossa legislação penal autoriza o réu a mentir, rindo do juiz e do promotor: considera isso autodefesa, não punida criminalmente. Nos Estados Unidos, por exemplo, pune-se o ato como crime de perjúrio. Como buscar, neste cenário, a verdade?

O Contrato Social de Rousseau pressupunha a troca de parcela dos direitos individuais pela proteção do poderoso Estado. O contrato parece ter trincado por aqui e não vem sendo cumprido. O Estado hoje é poderoso, burocrático, corrupto e não protege seus cidadãos – 1/3 da população brasileira não tem acesso a saneamento básico, e para os pobres são estreitas as portas do acesso à justiça. Saúde e educação públicas são sofríveis.

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O escravagismo, lamentavelmente, ainda vive: pessoas escravizadas são libertadas por agentes do Ministério do Trabalho todos os dias, apesar de a abolição da escravidão ter ocorrido um ano antes da República, o que nos relembra com amargura que nossas evoluções vão só até a página dois. Ao mesmo tempo, há filas para aquisição de aeronaves executivas luxuosas e relógios são comercializados a preços pornográficos, simultaneamente à sobrevivência das desumanas palafitas, símbolos maiúsculos da desigualdade social brutal que persiste.

Tudo isso se agrava especialmente diante de Executivo e Legislativo que historicamente não reúnem vontade política de combater a corrupção. Ao contrário, garantem maquiavelicamente unidos a impunidade, como se fez com a aprovação da Lei 14.230/21, que aniquilou a Lei de Improbidade. Por falar em relógios luxuosos, são graves os fatos que estão vindo à tona relacionados ao Rolex, dado de presente ao Brasil, que o ajudante de ordens de Bolsonaro vendeu por US$ 30 mil, como se o bem lhe pertencesse.

Isso não pode ser admitido em relação a ele ou a qualquer presidente da República, nem o uso abusivo do cartão corporativo presidencial, que precisa ser regrado, limitado e transparente. A escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) precisa atender aos interesses da sociedade, e não aos interesses pessoais do governante. Mandatos no STF seriam saudáveis.

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Evidencia-se o quanto se apagou a linha divisória entre o público e o privado, o quanto tem sido difícil para quem governa ser transparente, prestar contas, ter atitude republicana ética, 134 anos depois de sua proclamação.

Ética, sim, este conjunto de regras morais válidas para indivíduo e sociedade, que parece anêmica após brutais hemorragias. Que, ao longo do tempo, foi covardemente esmurrada, depauperada, golpeada, asfixiada, tendo-se reduzido a poucas e honrosas exceções representadas pelo personagem caricatural Lineu, o fiscal, de A Grande Família, peça de museu da TV brasileira.

Compras de apoio político pelo Executivo se escancaram e nem são escondidas, praticadas à luz do dia, com recordes de liberações de emendas bilionárias para favorecimento de aliados. O orçamento secreto, reciclado e ainda mais sofisticado e requintado, redefiniu o tom contemporâneo do presidencialismo de cooptação, praticado governo após governo. Política é a arte do possível, mas como compatibilizar esses comportamentos com os preceitos da ética na política?

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A Suprema Corte, a quem devemos decisões históricas e corajosas para a preservação do regime democrático e da dignidade humana, que tem o papel primacial de guardiã da Constituição, nossa carta política, acaba de decidir, por 7 votos a 4, liberar juízes para atuar em processos de antigos clientes de escritórios de advocacia com parentes desses magistrados em seus quadros. Opuseram-se os ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso (estes dois últimos com filhas advogadas).

O voto vencedor afirma a dificuldade de conhecer as carteiras de clientes – argumento frágil em tempos de tecnologia e inteligência artificial ultra-avançada, que nos surpreende a cada dia pelas infinitas potencialidades. Com todo o respeito, os ministros que têm parentes ou esposas advogando nem sequer deveriam ter participado deste julgamento, pois o conflito de interesses é evidente, diante do princípio que deveria se sobrepor, da prevalência do interesse público. Como compatibilizar essa decisão diante da necessária ética na justiça?

Sem esquecer o machismo, o racismo, o ódio, manifestações aberrantes de negação de valores éticos comportamentais humanos, que vêm nos assombrando. Apesar de tudo e todos, não se pode jamais desistir da ética como bússola de vida, como norte, mesmo diante de tantas adversidades. Devemos lutar todos os dias com resiliência para que ela se restabeleça e prevaleça. Como genializou Shakespeare: as rosas têm espinhos, no entanto, colhem-se.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

Os novos tempos líquidos trazem consigo a dificuldade quase invencível de interpretação dos fatos à nossa volta. A névoa espessa e canhestra da mentira – item de fábrica produzido em escala industrial nas narrativas de consultores baratos de plantão, a mando de poderosos – encobre dolosamente a verdade quase inalcançável.

Narrativa pode ser eufemismo de picaretagem arquitetada para o engodo e, depois, espalhada impunemente na internet e pelas redes sociais, na versão atualizada de Goebbels, ministro da propaganda nazista – “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Nossa legislação penal autoriza o réu a mentir, rindo do juiz e do promotor: considera isso autodefesa, não punida criminalmente. Nos Estados Unidos, por exemplo, pune-se o ato como crime de perjúrio. Como buscar, neste cenário, a verdade?

O Contrato Social de Rousseau pressupunha a troca de parcela dos direitos individuais pela proteção do poderoso Estado. O contrato parece ter trincado por aqui e não vem sendo cumprido. O Estado hoje é poderoso, burocrático, corrupto e não protege seus cidadãos – 1/3 da população brasileira não tem acesso a saneamento básico, e para os pobres são estreitas as portas do acesso à justiça. Saúde e educação públicas são sofríveis.

O escravagismo, lamentavelmente, ainda vive: pessoas escravizadas são libertadas por agentes do Ministério do Trabalho todos os dias, apesar de a abolição da escravidão ter ocorrido um ano antes da República, o que nos relembra com amargura que nossas evoluções vão só até a página dois. Ao mesmo tempo, há filas para aquisição de aeronaves executivas luxuosas e relógios são comercializados a preços pornográficos, simultaneamente à sobrevivência das desumanas palafitas, símbolos maiúsculos da desigualdade social brutal que persiste.

Tudo isso se agrava especialmente diante de Executivo e Legislativo que historicamente não reúnem vontade política de combater a corrupção. Ao contrário, garantem maquiavelicamente unidos a impunidade, como se fez com a aprovação da Lei 14.230/21, que aniquilou a Lei de Improbidade. Por falar em relógios luxuosos, são graves os fatos que estão vindo à tona relacionados ao Rolex, dado de presente ao Brasil, que o ajudante de ordens de Bolsonaro vendeu por US$ 30 mil, como se o bem lhe pertencesse.

Isso não pode ser admitido em relação a ele ou a qualquer presidente da República, nem o uso abusivo do cartão corporativo presidencial, que precisa ser regrado, limitado e transparente. A escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) precisa atender aos interesses da sociedade, e não aos interesses pessoais do governante. Mandatos no STF seriam saudáveis.

Evidencia-se o quanto se apagou a linha divisória entre o público e o privado, o quanto tem sido difícil para quem governa ser transparente, prestar contas, ter atitude republicana ética, 134 anos depois de sua proclamação.

Ética, sim, este conjunto de regras morais válidas para indivíduo e sociedade, que parece anêmica após brutais hemorragias. Que, ao longo do tempo, foi covardemente esmurrada, depauperada, golpeada, asfixiada, tendo-se reduzido a poucas e honrosas exceções representadas pelo personagem caricatural Lineu, o fiscal, de A Grande Família, peça de museu da TV brasileira.

Compras de apoio político pelo Executivo se escancaram e nem são escondidas, praticadas à luz do dia, com recordes de liberações de emendas bilionárias para favorecimento de aliados. O orçamento secreto, reciclado e ainda mais sofisticado e requintado, redefiniu o tom contemporâneo do presidencialismo de cooptação, praticado governo após governo. Política é a arte do possível, mas como compatibilizar esses comportamentos com os preceitos da ética na política?

A Suprema Corte, a quem devemos decisões históricas e corajosas para a preservação do regime democrático e da dignidade humana, que tem o papel primacial de guardiã da Constituição, nossa carta política, acaba de decidir, por 7 votos a 4, liberar juízes para atuar em processos de antigos clientes de escritórios de advocacia com parentes desses magistrados em seus quadros. Opuseram-se os ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso (estes dois últimos com filhas advogadas).

O voto vencedor afirma a dificuldade de conhecer as carteiras de clientes – argumento frágil em tempos de tecnologia e inteligência artificial ultra-avançada, que nos surpreende a cada dia pelas infinitas potencialidades. Com todo o respeito, os ministros que têm parentes ou esposas advogando nem sequer deveriam ter participado deste julgamento, pois o conflito de interesses é evidente, diante do princípio que deveria se sobrepor, da prevalência do interesse público. Como compatibilizar essa decisão diante da necessária ética na justiça?

Sem esquecer o machismo, o racismo, o ódio, manifestações aberrantes de negação de valores éticos comportamentais humanos, que vêm nos assombrando. Apesar de tudo e todos, não se pode jamais desistir da ética como bússola de vida, como norte, mesmo diante de tantas adversidades. Devemos lutar todos os dias com resiliência para que ela se restabeleça e prevaleça. Como genializou Shakespeare: as rosas têm espinhos, no entanto, colhem-se.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

Os novos tempos líquidos trazem consigo a dificuldade quase invencível de interpretação dos fatos à nossa volta. A névoa espessa e canhestra da mentira – item de fábrica produzido em escala industrial nas narrativas de consultores baratos de plantão, a mando de poderosos – encobre dolosamente a verdade quase inalcançável.

Narrativa pode ser eufemismo de picaretagem arquitetada para o engodo e, depois, espalhada impunemente na internet e pelas redes sociais, na versão atualizada de Goebbels, ministro da propaganda nazista – “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Nossa legislação penal autoriza o réu a mentir, rindo do juiz e do promotor: considera isso autodefesa, não punida criminalmente. Nos Estados Unidos, por exemplo, pune-se o ato como crime de perjúrio. Como buscar, neste cenário, a verdade?

O Contrato Social de Rousseau pressupunha a troca de parcela dos direitos individuais pela proteção do poderoso Estado. O contrato parece ter trincado por aqui e não vem sendo cumprido. O Estado hoje é poderoso, burocrático, corrupto e não protege seus cidadãos – 1/3 da população brasileira não tem acesso a saneamento básico, e para os pobres são estreitas as portas do acesso à justiça. Saúde e educação públicas são sofríveis.

O escravagismo, lamentavelmente, ainda vive: pessoas escravizadas são libertadas por agentes do Ministério do Trabalho todos os dias, apesar de a abolição da escravidão ter ocorrido um ano antes da República, o que nos relembra com amargura que nossas evoluções vão só até a página dois. Ao mesmo tempo, há filas para aquisição de aeronaves executivas luxuosas e relógios são comercializados a preços pornográficos, simultaneamente à sobrevivência das desumanas palafitas, símbolos maiúsculos da desigualdade social brutal que persiste.

Tudo isso se agrava especialmente diante de Executivo e Legislativo que historicamente não reúnem vontade política de combater a corrupção. Ao contrário, garantem maquiavelicamente unidos a impunidade, como se fez com a aprovação da Lei 14.230/21, que aniquilou a Lei de Improbidade. Por falar em relógios luxuosos, são graves os fatos que estão vindo à tona relacionados ao Rolex, dado de presente ao Brasil, que o ajudante de ordens de Bolsonaro vendeu por US$ 30 mil, como se o bem lhe pertencesse.

Isso não pode ser admitido em relação a ele ou a qualquer presidente da República, nem o uso abusivo do cartão corporativo presidencial, que precisa ser regrado, limitado e transparente. A escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) precisa atender aos interesses da sociedade, e não aos interesses pessoais do governante. Mandatos no STF seriam saudáveis.

Evidencia-se o quanto se apagou a linha divisória entre o público e o privado, o quanto tem sido difícil para quem governa ser transparente, prestar contas, ter atitude republicana ética, 134 anos depois de sua proclamação.

Ética, sim, este conjunto de regras morais válidas para indivíduo e sociedade, que parece anêmica após brutais hemorragias. Que, ao longo do tempo, foi covardemente esmurrada, depauperada, golpeada, asfixiada, tendo-se reduzido a poucas e honrosas exceções representadas pelo personagem caricatural Lineu, o fiscal, de A Grande Família, peça de museu da TV brasileira.

Compras de apoio político pelo Executivo se escancaram e nem são escondidas, praticadas à luz do dia, com recordes de liberações de emendas bilionárias para favorecimento de aliados. O orçamento secreto, reciclado e ainda mais sofisticado e requintado, redefiniu o tom contemporâneo do presidencialismo de cooptação, praticado governo após governo. Política é a arte do possível, mas como compatibilizar esses comportamentos com os preceitos da ética na política?

A Suprema Corte, a quem devemos decisões históricas e corajosas para a preservação do regime democrático e da dignidade humana, que tem o papel primacial de guardiã da Constituição, nossa carta política, acaba de decidir, por 7 votos a 4, liberar juízes para atuar em processos de antigos clientes de escritórios de advocacia com parentes desses magistrados em seus quadros. Opuseram-se os ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso (estes dois últimos com filhas advogadas).

O voto vencedor afirma a dificuldade de conhecer as carteiras de clientes – argumento frágil em tempos de tecnologia e inteligência artificial ultra-avançada, que nos surpreende a cada dia pelas infinitas potencialidades. Com todo o respeito, os ministros que têm parentes ou esposas advogando nem sequer deveriam ter participado deste julgamento, pois o conflito de interesses é evidente, diante do princípio que deveria se sobrepor, da prevalência do interesse público. Como compatibilizar essa decisão diante da necessária ética na justiça?

Sem esquecer o machismo, o racismo, o ódio, manifestações aberrantes de negação de valores éticos comportamentais humanos, que vêm nos assombrando. Apesar de tudo e todos, não se pode jamais desistir da ética como bússola de vida, como norte, mesmo diante de tantas adversidades. Devemos lutar todos os dias com resiliência para que ela se restabeleça e prevaleça. Como genializou Shakespeare: as rosas têm espinhos, no entanto, colhem-se.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’

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