Em 2017, o senador Álvaro Dias apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333 no sentido de ser extinto o foro privilegiado. Foi aprovada por unanimidade nas comissões e no plenário do Senado e tramitou em todas as comissões da Câmara, onde igualmente foi aprovada, jamais tendo sido o tema pautado para deliberação pelo presidente da Câmara, que o trancafia em sua gaveta, tendo ele competência exclusiva para pautar a votação.
Em maio de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao analisar questão de ordem na Ação Penal 937, decidiu, a meu ver acertadamente, que a prerrogativa de foro somente é aplicável durante o exercício do mandato e relacionada às funções concretamente desempenhadas. A decisão enalteceu a disfuncionalidade prática do regime de foro privilegiado em razão das sucessivas alterações dos cargos exercidos pelo acusado.
Além disso, com muita propriedade, enalteceram-se os aspectos negativos da movimentação da máquina do STF para julgar o varejo dos casos concretos criminais, o que representaria fator de contribuição para congestionar ainda mais o tribunal, em detrimento de suas missões definidas constitucionalmente, de ser o guardião da ordem jurídica e provedor permanente de segurança jurídica.
Quatro anos após a decisão, houve substancial redução, de cerca de 80%, do acervo de inquéritos e ações penais, como apontam dados do portal do STF. Antes de 31/12/2017 havia 432 inquéritos e 95 ações penais. Em 1/8/2018, após a decisão, os números caíram para 255 e 58, respectivamente – de imediato, 40%. Em 2022 havia 68 inquéritos e 21 ações penais (redução de 80% em relação ao período anterior ao julgamento da questão de ordem).
Isso significa que a decisão tomada em 2018 trouxe ao STF muito melhores condições para apreciar ações diretas de inconstitucionalidade, ações por descumprimento de preceitos fundamentais, além dos recursos extraordinários em virtude de violações à Constituição, ainda que mais de 80% das decisões em 2023 tenham sido monocráticas, o que não é o ideal em se tratando de um tribunal de onde se espera como regra obviamente a colegialidade.
Quando qualquer autoridade é julgada em foro privilegiado pelo STF, suprime-se o duplo grau de jurisdição e coloca-se em xeque o princípio constitucional da isonomia. Na República Velha, o Brasil precisou de institutos dessa natureza, mas hoje os magistrados são selecionados com extremo rigor pelos concursos públicos, de forma séria, republicana e técnica, e a magistratura é instituição independente e vigorosa.
Não se mostra razoável que se subtraia competência de julgamento de um magistrado estadual ou federal, recrutado de forma meritocrática em concurso de provas e títulos, para apreciar acusação dirigida a um ex-parlamentar, por exemplo, que nem sequer conserva seu mandato.
Já se discute concretamente a hipótese de eliminar o foro do parlamentar com mandato, parecendo verdadeiro retrocesso ampliar o foro privilegiado para quem não mais ocupa os cargos respectivos. Especialmente porque o entendimento em sentido oposto do próprio STF foi sedimentado há menos de seis anos, formado pela maioria dos mesmos ministros que hoje integram o tribunal.
Indiscutivelmente, o Direito é uma ciência de natureza interpretativa e os precedentes jurisprudenciais são passíveis de revisão. Mas, ao mesmo tempo, o STF tem a missão de oferecer à sociedade a segurança jurídica inerente ao último degrau judiciário. E observe-se: o tema foi apreciado há menos de seis anos pelo tribunal sem que nenhum elemento novo tenha surgido na dinâmica social. Nenhum fato novo lastreia esta reinterpretação.
Por exemplo: um tema profundo como o das uniões homoafetivas foi objeto de discussão naquele tribunal, que decidiu negativamente, e foi retomado anos após, em virtude de uma mudança comportamental da sociedade, que demandou reinterpretação do tema pela Suprema Corte do País. Ao fim, em 2011, a Corte reconheceu esse direito, já que decisão anterior envelheceu, demandou revisão interpretativa, diante da fadiga de material.
Mas que fadiga teria sofrido a interpretação da decisão tomada em 2018, que gerou redução substancial do acervo e, pois, vem na direção da democratização da distribuição da justiça e da prevalência dos cânones republicanos?
A meu ver, o foro privilegiado é uma verdadeira excrescência, que deveria ser reduzida a pouquíssimos casos. Não deveria ser ampla, não pode abranger números superlativos como temos no Brasil (quase 54 mil pessoas), especialmente porque o STF não foi concebido para instruir e processar ações penais em volumes exorbitantes, estando tais processos fadados à prescrição, fonte de impunidade, como recentemente alertou a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em seu quarto relatório relacionado à implantação de sua convenção antissuborno.
A partir da evidência no sentido de que a restrição se mostrou certeira, com enxugamento do acervo processual, a ampliação do foro privilegiado pelo STF para ex-mandatários, ainda que possa ser justificada juridicamente (quase tudo pode), não se mostra recomendável diante de relativamente recente interpretação em sentido oposto pelo próprio tribunal. Em nome da eficiência, da coerência, da segurança jurídica e da prevalência do interesse público.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’