As antevisões do britânico Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, no âmbito da tecnologia, em combinação com a manipulação psicológica, propunham-se a desenhar a Londres de 2540. Mais de 90 anos depois, o mundo encontra-se em encruzilhada diante dos inúmeros desafios éticos apresentados pela tecnologia.
Ficamos encantados diante de seu poder, mas grandes poderes trazem consigo grandes responsabilidades. Poder deve ter limites em todas as esferas – poder sem limites é tirania.
O mundo digital é esfera existencial tão paralela à real que, para muitas pessoas, para comer um bife com salada é necessário postar no Instagram, pois a validação completa pressupõe publicação. E há os treinadores de coisa nenhuma, que se autodenominam coaches, sem formação superior, que pelo simples fato de terem milhões de seguidores levam pessoas a expor a risco sua saúde, em busca da felicidade. Podemos ir ao infinito nos exemplos. Sem esquecer o tráfico de drogas virtual e os processos de linchamento virtual, os cancelamentos – objeto do Projeto de Lei (PL) 1.873/23. Mas leis impondo penas criminais, pressupondo que o projeto seja aprovado, não são obviamente suficientes.
O que preocupa é a sensação que ainda prepondera de que o mundo da internet é terra sem lei. Os delinquentes violam a lei à luz do dia. Creem na impunidade em geral, mas têm uma certeza ainda maior da impunidade deste tipo específico de transgressão pela certeza de que não há leis nem aparato para os enquadrar.
Proliferam nas redes perfis sem nome nem sobrenome do titular, mas apenas sopas de letras e números, usando imagens aleatórias, com zero postagens, zero seguidores, evidenciando tratar-se de perfil fraudulento que não foi barrado na origem.
Mantêm-se ativos sem fiscalização pelas plataformas gigantes da tecnologia (Big Techs), cujo único interesse são as receitas bilionárias com anúncios, sem eficiência em coibir estes perfis nem a difusão de conteúdo de ódio ou violência, que circula impunemente e com desenvoltura cínica nas redes sociais.
Fazendo comentários gerando dano à imagem de empresas e de pessoas, estes perfis são um pequeno exemplo de fraude tecnológica, pois são milhares os expedientes que partem da mentira e da má-fé e ficam impunes, diante da inércia indevidamente complacente das plataformas.
Durante a pandemia, a propósito, mais de 120 nações celebraram um pacto mundial contra a difusão de fake news para proteger a saúde pública em nível mundial. As principais forças democráticas do mundo o assinaram, mas infelizmente o Brasil se recusou a subscrever o documento, juntando-se a Cuba e à Coreia do Norte de Kim Jong-un.
A inteligência artificial é o mais novo capítulo deste processo histórico que começa a se descortinar e traz novas e graves preocupações para o mundo. Como decifrar, como lidar, como extrair os melhores benefícios de forma ética e humana? Como compatibilizar inteligência artificial com ESG? A inteligência artificial é sustentável?
Em relação à nossa difícil realidade tupiniquim, estamos a dez meses das eleições municipais, num país que ostenta hoje o maior fundo eleitoral do planeta (R$ 4,7 bilhões), mesmo diante de nossa gigante desigualdade social e tendo metade da população sem acesso a saneamento básico.
O que esperar destas eleições, diante desta nova realidade, em que está disponível a inteligência artificial, com alto potencial de engodo para o eleitor, na perspectiva de que nossa Justiça Eleitoral dispõe de um aparelhamento fiscalizatório extremamente modesto?
Recentemente, uma foto do papa Francisco usando uma jaqueta puffer branca varreu o mundo. Era falsa, fruto de montagem com inteligência artificial, mas muitas pessoas no mundo acreditaram que a cena tivesse ocorrido, tamanho o grau de realismo da imagem.
O que poderá acontecer nestas eleições municipais, num país com tamanhas disparidades, com tamanha desinformação e déficit de educação? Tendo em vista que a inteligência artificial permite a edição de vídeos em nível sofisticadíssimo – com manipulação de voz, fazendo crer que quem aparece nas imagens é A ou B –, o céu é o limite.
Estou me referindo aqui às eleições municipais de 2024, mas o que podemos pensar em relação às eleições de 2026 para a escolha de presidente da República, governadores, senadores e deputados federais e estaduais? Como lidar com a realidade do crime organizado fazendo uso em escala industrial destas ferramentas de inteligência artificial para a prática de crimes?
Mas a mais recente novidade na arena política é uma movimentação no Congresso, na Comissão do Orçamento, no sentido de transferir recursos do desaparelhado sistema da Justiça Eleitoral para o Fundo Eleitoral – verdadeiro escândalo, aberração que nem pode ser definida em palavras.
A inteligência artificial é uma conquista da humanidade, mas precisa ser decifrada e muito bem regulada, sob pena de uso criminoso e altamente lesivo à sociedade. Além disso, o respeito irrestrito à vontade do eleitor é elemento nuclear da democracia, e é inadmissível qualquer forma de engodo, assim como o enfraquecimento astucioso do sistema de Justiça Eleitoral, sob pena de inviabilizarmos irreparavelmente o Estado Democrático de Direito no Brasil.
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PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’