O golpismo está mais ambicioso, no Brasil. Pode ir além da tomada do poder, anular mais de um século de evolução e jogar o País num passado inimaginável para muitos cidadãos. Assassinatos foram discutidos na conspiração recém-descoberta, segundo informou a Polícia Federal (PF). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin estariam entre as vítimas. Mas nenhum golpe ocorreu, nem atentados, e isso poderia bastar, numa visão muito otimista, para se esquecer da história. Defensores da extrema direita comentaram o episódio como se nada tivesse ocorrido além de palavras. Deve encerrar-se o caso, portanto, como se os envolvidos apenas tivessem conversado numa tertúlia?
A PF preferiu tratar o caso como um problema real e incontornável – um plano de golpe com homicídios. Além do presidente e do vice-presidente da República, a violência deveria vitimar um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, também desafeto da direita radical. Houve adesão de figuras fardadas, mas o chefe do Exército rejeitou a conspiração. Na quinta-feira, foram indiciados por tentativa de golpe o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 suspeitos de conspiração, incluídos os generais Braga Netto e Augusto Heleno, o tenente-coronel Mauro Cid e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto.
Com o indiciamento de 37 pessoas, poderá haver processos e várias condenações, mas nada disso garantirá a eliminação do golpismo. O risco persistirá enquanto extremistas mobilizarem apoiadores e convencerem cidadãos das vantagens do autoritarismo. Essa pregação será facilitada, quase certamente, se falharem o combate às desigualdades e a ampliação de perspectivas para todos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus principais ministros certamente conhecem e são capazes de avaliar esses perigos. Políticas eficazes de desenvolvimento econômico e social podem contribuir para a manutenção da democracia, mas dependem de bons padrões administrativos do setor público. Isso inclui – fato nem sempre reconhecido – competência e prudência na condução das finanças públicas. Gastança pode atrair apoio de alguns grupos e até gerar popularidade por algum tempo. Mas esses ganhos tendem a se esvair quando se evidenciam os desarranjos fiscais e seus efeitos inflacionários.
Conter o extremismo e preservar a ordem democrática envolve mais que a geração de benefícios materiais para esta ou aquela classe. O jogo pode ser muito mais complexo, como se observou nas eleições americanas e também, recentemente, nas disputas municipais no Brasil. O PT falhou, de forma evidente, na identificação das demandas dos chamados grupos populares. Essas demandas mudaram em meio século, mas o presidente Lula e seu partido parecem, com frequência, continuar envolvidos no jogo dos anos 1970-1980.
Entender as demandas atuais de todos os grupos pode ser essencial para a preservação dos valores democráticos. As chamadas classes populares terão, ainda, as mesmas ambições dos grupos atraídos pelos primeiros comícios petistas? Os trabalhadores treinados nos cursos profissionais de hoje são reproduções, com roupas modernas, daqueles conhecidos pelo operário Lula quando se formou torneiro mecânico? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e alguns de seus companheiros parecem desconhecer essas questões ou desprezá-las. O presidente aparenta, de vez em quando, reconhecer as transformações – como a importância eleitoral de grupos evangélicos – e tentar assimilá-las politicamente, mas tende, com frequência, a reviver suas origens.
Reviver as origens inclui, obviamente, o retorno eventual a ideias petistas sobre as finanças públicas. Isso impõe um trabalho adicional ao ministro da Fazenda, empenhado em criar para as contas do governo uma perspectiva de estabilidade. Quando as críticas se avolumam, o presidente recita uma promessa de austeridade e promete apoio ao ministro, mas o espetáculo de prudência logo se interrompe. Distante do petismo ao defender uma ordem democrática liberal, o presidente se revela um petista de raiz quando segue o impulso de gastar, como se a mera gastança fosse função essencial do governo.
Usar o dinheiro público de forma prudente, eficiente e eficaz pode ser muito mais que uma boa prática gerencial. Pode ser uma forma de promover a integração social e fortalecer a democracia. Dinheiro politicamente bem aplicado pode combinar a geração de riqueza e a ampliação de oportunidades para milhões de pessoas. A pobreza ainda é grande, mesmo com a inegável diminuição da miséria, e é preciso investir muito no apoio aos pobres, na difusão de competências e na multiplicação de oportunidades.
Cuidar dessas tarefas é muito mais que a execução de uma boa política econômica. É um trabalho indispensável à sustentação da ordem democrática, ao seu aperfeiçoamento e à contenção do risco, novamente evidenciado no Brasil, do autoritarismo. É necessário muito mais que o indiciamento de um bando de conspiradores para valorizar e preservar as liberdades de uma democracia liberal.
*
JORNALISTA