Abaixo o dólar, viva o yuan, proclama com suas ações o governo petista, menos próximo dos Estados Unidos que seu antecessor e muito mais voltado para a China. O Brasil está disposto a aceitar a moeda chinesa no comércio com a Argentina, informou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O anúncio ocorreu em Johannesburgo, África do Sul, onde o presidente Xi Jinping se impôs como figura mais importante na reunião do Brics. O presidente Vladimir Putin participou virtualmente, sem se arriscar à detenção ordenada pelo Tribunal Penal Internacional. Mas valeu a pena, certamente, ficar em Moscou e acompanhar o noticiário sobre a morte do mercenário Yevgeny Prigozhin, citado entre as vítimas de um desastre aéreo na Rússia. Uma perícia honesta e bem executada poderá, ou poderia, indicar se foi um acidente.
Só os presidentes Putin e Lula falaram sobre a guerra na Ucrânia, em pronunciamentos durante a cúpula do Brics. Ignorado o assunto pelos outros participantes, sobrou muito espaço para a afirmação da liderança chinesa. Além de se destacar como representante da segunda maior economia do mundo, o presidente Xi Jinping defendeu com sucesso a ampliação do grupo, contra a opinião do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o brasileiro serviu com esmero ao líder chinês.
Repetindo a arenga contra a predominância da moeda americana, Lula propôs a adoção de moeda própria no comércio entre os países do Brics. Mas a mágica pode ser mais complexa do que talvez pareça inicialmente. Como seria estabelecida a relação entre as moedas nacionais e aquela escolhida para as trocas?
Sem cuidar de questões desse tipo, o presidente brasileiro tem apresentado a mesma proposta em conversas com autoridades do Mercosul. A única novidade prática, até agora, foi a sugestão de Haddad aos importadores argentinos, mas a moeda escolhida pelo ministro brasileiro foi o yuan. Na Argentina, porém, o discurso de um dos candidatos à presidência, Javier Milei, aponta para a dolarização da economia, truque já tentado sem sucesso no século passado. Também houve remédios mágicos, por muito tempo, no receituário brasileiro, mas foram abandonados, até agora sem recuo, desde os anos 1990.
Com propostas como a extinção do Banco Central, Milei é apontado e até apoiado como novidade promissora. Mas nada tem sido mais comum, na política argentina do último meio século, do que propostas de soluções mágicas, e até bizarras, para os desarranjos econômicos. Os truques são lançados, a magia é encenada e os problemas podem até recuar, inicialmente, mas os desajustes logo retornam e tudo piora em pouco tempo.
A Argentina, como outros países latino-americanos, tem bons economistas, alguns com importante currículo internacional. Mas até profissionais com histórico mais modesto poderiam identificar os principais desafios econômicos e propor soluções prosaicas e eficazes. Não falta conhecimento especializado. Só tem faltado, com regularidade notável, a ação política necessária para a solução ou atenuação dos problemas.
Pior que isso: as políticas têm ido, repetidamente, no sentido contrário. Já se usaram reservas cambiais para reforçar o Tesouro, apesar da frequente escassez de moedas fortes. Já se impuseram barreiras à exportação de produtos agrícolas, para conter os preços no varejo. Com isso se perderam dólares, prejudicou-se a agropecuária, estrela principal da economia argentina, e afetou-se a capacidade de importação.
O presidente brasileiro e seus ministros econômicos certamente conhecem os fracassos e as condições de sucesso das políticas empregadas no Brasil. Devem conhecer também as experiências desastrosas da política argentina, assim como as poucas iniciativas bem concebidas e bem executadas no último meio século. Devem saber, embora a admissão desse fato possa horrorizar o presidente Lula, o tipo de política recomendável para a correção de persistentes desarranjos estruturais. Não há, no caso argentino, como fugir dos ajustes típicos orientados e financiados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). A atuação do fundo tem sido mais suave e com maior prazo para os arranjos, mas a natureza das políticas tem-se mantido.
O presidente Lula continua falando mal do FMI e preservando, portanto, a figura aplaudida pela esquerda mais juvenil. Mas nem por isso recusou um compromisso de condução responsável das finanças públicas, embora isso contrarie companheiros de partido.
Esse compromisso contrasta com a insegurança fiscal, econômica e cambial presente no maior parceiro do Brasil no Mercosul e terceiro maior importador de produtos brasileiros. Não cabe a Lula dar palpite sobre a administração interna de outro país. Mas tampouco lhe cabe apoiar o governo desse país, financeira ou politicamente, em sua persistente resistência aos padrões mínimos de seriedade fiscal e monetária. Só esse apoio, somado a um antiamericanismo juvenil, explica a disposição de aceitar yuans, em vez dos dólares sempre escassos na Argentina, como pagamento de produtos importados do Brasil.
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JORNALISTA