O golpismo está presente e atuante sessenta anos depois do desastre político de 1964. Também por isso é preciso lembrar o golpe militar de seis décadas atrás, em vez de esquecer a data com um discurso de conciliação e pacificação. Há, sem dúvida, diferenças importantes entre os dois momentos. O apoio à democracia, agora, é manifestado por mais de 70% dos cidadãos, segundo pesquisas. Além disso, a cúpula das Forças Armadas tem contido a mobilização antidemocrática ensaiada por alguns oficiais. As instituições são mais sólidas do que eram há seis décadas, mas seria enorme imprudência menosprezar o risco do autoritarismo.
O quebra-quebra de 8 de janeiro foi muito mais que um surto coletivo de alguns milhares de baderneiros. Constituiu, claramente, a continuação dos ataques conduzidos em Brasília, em 12 de dezembro, por uma turba inconformada com o resultado da eleição presidencial. Pregadores, organizadores e financiadores garantiram condições básicas para a farra antidemocrática na Praça dos Três Poderes e nas avenidas principais da capital. Essa gente estará interessada, de fato, em discursos de conciliação e de esquecimento dos 21 anos tenebrosos iniciados em 1964? Ou estará saudosa dos tempos da censura e da tortura, embora milhares de baderneiros de hoje só tenham nascido depois de 1985?
Mesmo com dificuldades e risco de insucesso, é papel do governo, sem dúvida, favorecer o entendimento e a pacificação. Se faltassem outros motivos, haveria pelo menos o interesse em facilitar o trabalho governamental. Esse empenho é especialmente relevante num país ainda em recuperação dos quatro anos de desgoverno iniciados em 2019.
Pode ser um erro enorme, no entanto, confundir a conciliação com a anulação da memória política. Não houve esse esforço de esquecimento na Espanha, em Portugal, na Argentina e em vários outros países submetidos, por muito tempo, aos horrores do autoritarismo.
O esquecimento interessa principalmente a quem praticou desmandos e barbaridades. No Brasil, a anistia igualou formalmente quem usou o chicote do poder e quem resistiu pela força à violência governamental. A democratização, em vários casos, pode ter sido até favorecida pela memória dos tempos de opressão.
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Entre os brasileiros, a memória da repressão já é deficiente porque a população é jovem e pouco informada sobre a história de seu país. Mesmo entre os mais velhos, é escasso o conhecimento das práticas da ditadura. Havia censura, a comunicação governamental deformava os fatos e milhões de pessoas pouco sabiam sobre a realidade política e econômica. Sobre a inflação, por exemplo, a informação oficial dava destaque aos indicadores do Rio de Janeiro, onde o abastecimento era favorecido pela intervenção governamental.
Mas o horror político era ofuscado, perante grande parte da população, pelo crescimento econômico observado entre a segunda metade dos anos 60 e parte dos 80. Houve expansão da atividade, aumento do consumo e crescimento do emprego,embora a desigualdade tenha permanecido como uma das grandes marcas da sociedade brasileira.
Além disso, houve modernização tecnológica, muito investimento industrial e enorme expansão das exportações, favorecida inicialmente pela flexibilização do câmbio a partir de 1968. Com a modernização do campo, iniciada nos anos 70 e mais visível a partir dos 80, o país de enormes terras agricultáveis pôde tornar-se, enfim, uma potência agrícola com presença global. Ao mesmo tempo, o setor público realizou e estimulou grandes investimentos transformadores da infraestrutura.
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Não há uma narrativa simples da ditadura iniciada há seis décadas, encerrada oficialmente em 1985 e substituída, enfim, pela ordem constitucional instaurada em 1988. Os horrores do autoritarismo ocorreram paralelamente a uma longa fase de expansão econômica e de modernização produtiva. A administração pública mobilizou simultaneamente, nesse período, governantes autoritários, militares e policiais antidemocráticos e torturadores e, de outro lado, políticos, juristas, economistas e técnicos empenhados em modernizar as condições legais, financeiras e produtivas do Pais.
Iniciada a experiência ditatorial, as primeiras providências incluíram, do lado econômico, a criação de um banco central e a implantação de uma reforma financeira. Reformas estavam em discussão muitos anos antes do golpe militar. O projeto de um banco central, por exemplo, estava em debate desde os anos 40. Em muitas outras economias, grandes e pequenas, reformas como essas foram realizadas sem ações ditatoriais, sem censura e sem torturas. Não há, no entanto, como refazer a história. Resta seguir em frente valorizando as normas democráticas e os melhores padrões de civilização – e lembrando sempre os custos terríveis da fase ditatorial. É muito importante, sim, preservar a memória daqueles tempos.