Golpistas brasileiros festejaram a vitória de Donald Trump na eleição americana, como se isso fosse um sinal para a anistia a quem depredou Brasília e tentou derrubar o governo em 8 de janeiro de 2023. Anistia se aplica geralmente a crimes comuns e, em situações muito especiais, a crimes políticos, quando se restabelece a democracia e se busca a reconciliação. Convém cuidar do assunto com muita prudência. A democracia sobreviveu ao golpismo, as sedes dos Poderes foram restauradas e a rotina institucional foi mantida, como se comprovou nas eleições deste ano. Mas a extrema direita pouco ou nada mudou. Continua a desfrutar dos direitos e liberdades comuns, como fazem os extremistas em todas as democracias, e a esperar novas oportunidades para destruir a ordem constitucional.
Não basta, no entanto, reprimir o golpismo e defender legalmente, no dia a dia, as liberdades básicas. Pesquisas têm apontado, entre os cidadãos, preferência majoritária pelos valores democráticos, mas políticos eleitos nem sempre se mostram alinhados a essa preferência. É preciso fazer muito mais para consolidar, em todos os grupos, o compromisso com as normas fundamentais da democracia.
Esse esforço é especialmente relevante num país de enormes desigualdades econômicas e culturais, onde o conservadorismo se confunde, frequentemente, com a aceitação do autoritarismo. A mistura de religião e política, hoje mais visível do que em outras épocas do Brasil independente, torna o cenário especialmente complicado.
A extrema direita tem explorado essa mistura com empenho e com aparente sucesso. Passados 135 anos da implantação da República, ainda é necessário – e talvez mais do que em outros tempos – lembrar e reafirmar com vigor o caráter laico do Estado nacional. Esse caráter já foi respeitado, de fato, no período do Império, embora dom Pedro I tenha apresentado a Constituição de 1824 “por graça de Deus” e “em nome da Santíssima Trindade”.
Embora possa parecer estranho, o presidente da República ainda precisa, em 2024, reafirmar o Estado nacional como entidade responsável pela segurança, pelos direitos básicos e pela igualdade de todos os brasileiros, consagrados como indivíduos livres, com direitos intocáveis de cidadania e como sujeitos de uma ordem democrática.
Mas esse empenho produzirá resultados insuficientes, se faltar a esses indivíduos, ou a uma grande parte deles, a crença nessa ordem como condição essencial à sua dignidade e às suas possibilidades de bem-estar e de sucesso. Cuidar da integração de todos os grupos, incluídos os mais carentes, é, portanto, mais que uma tarefa vinculada a uma bandeira partidária. É um trabalho necessário à consolidação de uma sociedade capaz de operar de forma livremente colaborativa, apesar das diferenças entre os componentes do conjunto.
Não basta, portanto, promover o crescimento econômico, se for muito desigual o acesso ao bem-estar e a melhores condições de vida. O Brasil já viveu esse tipo de crescimento – ou de desenvolvimento, mesmo, dadas as grandes transformações nas condições de produção. A integração social nesse processo foi em geral limitada, com acesso restrito aos benefícios propiciados pelas mudanças.
Durante a grande expansão econômica iniciada na segunda metade dos anos 1960, apenas uma parcela da mão de obra teve acesso às ocupações de tecnologia mais moderna e remuneração mais elevada. A desigualdade acentuou-se, portanto, também no interior da classe trabalhadora, fato já reconhecido por analistas nos anos 1970. Embora o investimento em educação tenha aumentado nesse período, as oportunidades de formação permaneceram concentradas, assim como os benefícios econômicos da modernização profissional.
Nas décadas seguintes, Estado e setor privado continuaram fazendo muito menos que o necessário para distribuir mais amplamente as possibilidades de ascensão econômica ligadas à educação e ao treinamento. Embora reconhecida a importância econômica da escola, a política educacional nunca foi suficientemente integrada aos programas de expansão e transformação do sistema produtivo. Falou-se muito no exemplo coreano de articulação das políticas de crescimento e de educação, mas com limitados efeitos práticos. Excetuada a formação universitária, acessível a poucos e nem sempre de alta qualidade, a educação profissional continuou a depender principalmente do ensino privado e do treinamento empresarial.
Não há como cuidar com eficácia dos objetivos de integração social, de elevação das condições de vida e de valorização da ordem democrática sem combinar as políticas de crescimento econômico, de apoio aos grupos mais vulneráveis e de ambiciosa difusão das oportunidades educacionais. Não basta, obviamente, destinar grandes volumes de recursos aos chamados programas sociais. A ajuda emergencial pode ser indispensável, mas só se alcançarão resultados amplos, duradouros e relevantes para a democracia com amplo investimento na capacidade produtiva de todos os cidadãos – sempre com valorização das liberdades básicas.
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JORNALISTA