A invasão do Congresso norte-americano no dia 6 de janeiro de 2021 foi repetida, como farsa, no domingo, dois dias e dois anos depois, de maneira muito mais grave, porque atingiu, com criminosa destruição, também o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sede do governo, o Palácio do Planalto. O ponto comum entre os dois eventos é o inconformismo de grupos políticos radicais com o resultado das eleições presidenciais.
O que explica essa ocorrência tão grave no começo do novo governo e que tanta reação causou no exterior? Não há dúvida de que houve falha no tratamento das informações de inteligência, além de omissão das autoridades do governo do Distrito Federal (DF) e incompetência na proteção e na segurança da Praça dos Três Poderes. A tentativa de destruição do Estado de Direito resulta de causas mais profundas.
A divisão política e social do País, com crescente radicalismo por parte de grupos minoritários, está na base de grave crise política que terá desdobramentos sérios, inclusive pelo aparelhamento da máquina estatal com a contaminação ideológica das instituições públicas, como no caso dos agentes de segurança, tanto federais como do DF. O desrespeito às instituições caracteriza um estado de anomia por parte de uma parcela radical da sociedade brasileira. Depois do ocorrido no domingo, a ideia de convergência, união e pacificação, anseio de muitos e promessa de campanha, fica mais difícil de ser alcançada.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, depois de muitas horas, a exemplo de Donald Trump, procurou se dissociar dos atos violentos, mas acentua a divisão ao comparar o que aconteceu no domingo às ações da esquerda em 2013 e 2017. A responsabilidade política do ex-presidente foi apontada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ministro da Justiça, Flávio Dino. A responsabilidade jurídica terá de ser apurada. O governo observou que o ocorrido foi um ato terrorista e uma tentativa de golpe nunca registrada na história do País. A tentativa de eventual condenação de Bolsonaro por suas ações contra o resultado das urnas deverá acirrar os ânimos ainda mais.
A reação do governo federal tem de ser rápida para apurar as responsabilidades do crime e punir os culpados pelos atos de terrorismo. Algumas decisões foram prontamente tomadas: a intervenção federal na área de segurança por 30 dias no governo do Distrito Federal, a ser apreciada pelo Congresso; a prisão de quase 300 invasores em flagrante e 1.500 nos acampamentos; a investigação sobre os mandantes e financiadores do movimento; a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso; o pedido de cessão de membros das Forças Armadas para completar as forças que garantirão a lei e a ordem. O Judiciário determinou o afastamento do governador do DF por 90 dias e o fim dos acampamentos em frente e nas adjacências dos quartéis.
A crise desencadeada pela invasão e destruição de Brasília gerou forte turbulência política e piora no ambiente dos entendimentos que o novo governo está desenvolvendo para ampliar a margem de governabilidade. O radicalismo político deverá continuar e a oposição ao governo Lula vai se acirrar no Congresso e nas ruas. O presidente Lula terá de criar um clima político estável para a condenação dos criminosos e para impedir a repetição dessas ações.
Um dos fatores mais importantes para a difícil superação da turbulência deverá ser a firme manifestação da autoridade presidencial em todas as áreas, para liderar os esforços para o fortalecimento das instituições do centro democrático e para a retomada da agenda econômica e social.
Do ponto de vista político, um dos fatores mais sensíveis, com importante repercussão na evolução das ações do governo Lula, é o relacionamento entre civis e militares. Alguns fatos indicam a incerteza dessa relação: a politização de parte dos militares da ativa, como se viu concretamente na recusa do comandante da Marinha em participar da posse do seu substituto nomeado pelo presidente Lula, apesar das gestões do ministro da Defesa; a complacência até ontem das lideranças das Forças Armadas em relação à permanência dos acampamentos de seguidores de Bolsonaro que se multiplicaram em frente a quartéis militares; e o fato de Lula ter optado por não convocar ação das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), talvez pela incerteza da reação dos militares. A não manifestação das Forças Armadas durante os acontecimentos, contudo, foi um dos poucos aspectos positivos de toda a crise. Se tivesse havido uma efetiva tentativa de golpe às instituições, a não interveniência das Forças Armadas – que haviam dado mostras de que não tomariam partido, nem sairiam das linhas constitucionais – frustrou a expectativa. As instituições, bem ou mal, saíram fortalecidas.
Outra importante consequência da crise é a mudança da agenda, que deixa a economia e a governabilidade em um segundo plano para dar relevância à defesa das instituições e do Estado Democrático de Direito. As tensões deverão aumentar e ter desdobramentos em todos os níveis. As ações do Executivo, do Legislativo e do Judiciário contra os invasores, organizadores, financiadores e incentivadores tornarão a divisão do País ainda mais acentuada e radicalizada.
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PRESIDENTE DO CENTRO DE ESTUDOS DE DEFESA E SEGURANÇA NACIONAL (CEDESEN)