Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Bestializado


A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como a reunião do G-20 produzem resultados que justificam o esforço, ou se são exemplo de turismo diplomático

Por Simon Schwartzman

José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado...

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G-20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.

Será? A ideia central do G-20 é fortalecer a cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.

continua após a publicidade

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderado por Pequim.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.

continua após a publicidade

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

*

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado...

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G-20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.

Será? A ideia central do G-20 é fortalecer a cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderado por Pequim.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

*

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado...

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G-20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.

Será? A ideia central do G-20 é fortalecer a cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderado por Pequim.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

*

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado...

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G-20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.

Será? A ideia central do G-20 é fortalecer a cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderado por Pequim.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

*

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

José Murilo de Carvalho, em Os Bestializados, lembra como o povo, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na zona sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G-20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocava no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado...

Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G-20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram um documento que foi encaminhado ao presidente Lula da Silva para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de Estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de US$ 40 bilhões a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como também o mundo, se curvam diante do Brasil.

Será? A ideia central do G-20 é fortalecer a cooperação internacional para lidar com os grandes problemas da atualidade – as guerras, a mudança climática, a economia internacional, a fome e a pobreza. Sem Vladimir Putin e com Joe Biden em final de mandato, no entanto, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembleia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Tanto nesse como nos temas de mudança climática e nas questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.

A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como essa, que culminou com dois dias de caos na zona sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do Exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto –, produzem resultados que justificam o esforço, ou se são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extremos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida de que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.

Mas a justificativa central dessas reuniões é que elas contribuiriam para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “Sul Global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da 2.ª Guerra, com as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nessa nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Donald Trump apontando para um novo isolacionismo americano, essa nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderado por Pequim.

O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção dessa nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que de conferências de grande visibilidade como as do G-20.

Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isso, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.

*

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Simon Schwartzman

Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.