Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Ennio Candotti e o progresso da ciência


Hoje, não basta mais proclamar as virtudes da ciência e falar mal da ignorância, é preciso lidar com coragem com as contradições e os paradoxos que ela traz

Por Simon Schwartzman

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico. Assim era e foi o que fez Ennio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ennio chegou ao Brasil ainda criança e estudou Física na Universidade de São Paulo (USP) e, depois, na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcello Damy, Mário Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 1940, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ennio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além de pesquisar, valiam-se das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia de que precisavam para trabalhar. Em 1948, 60 cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e da sociedade. Para outros, ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

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A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão, como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e a temas de política universitária e acadêmica. Ennio Candotti assumiu a vice-presidência em 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a Segunda Guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A Física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica. As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou numa profissão como as outras, pressionada pela lógica de publicar ou morrer e afetada pelas incertezas da política.

A pandemia de covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ennio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje, sabemos, não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e os paradoxos que ela traz. É isso que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico. Assim era e foi o que fez Ennio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ennio chegou ao Brasil ainda criança e estudou Física na Universidade de São Paulo (USP) e, depois, na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcello Damy, Mário Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 1940, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ennio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além de pesquisar, valiam-se das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia de que precisavam para trabalhar. Em 1948, 60 cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e da sociedade. Para outros, ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão, como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e a temas de política universitária e acadêmica. Ennio Candotti assumiu a vice-presidência em 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a Segunda Guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A Física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica. As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou numa profissão como as outras, pressionada pela lógica de publicar ou morrer e afetada pelas incertezas da política.

A pandemia de covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ennio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje, sabemos, não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e os paradoxos que ela traz. É isso que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico. Assim era e foi o que fez Ennio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ennio chegou ao Brasil ainda criança e estudou Física na Universidade de São Paulo (USP) e, depois, na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcello Damy, Mário Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 1940, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ennio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além de pesquisar, valiam-se das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia de que precisavam para trabalhar. Em 1948, 60 cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e da sociedade. Para outros, ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão, como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e a temas de política universitária e acadêmica. Ennio Candotti assumiu a vice-presidência em 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a Segunda Guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A Física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica. As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou numa profissão como as outras, pressionada pela lógica de publicar ou morrer e afetada pelas incertezas da política.

A pandemia de covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ennio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje, sabemos, não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e os paradoxos que ela traz. É isso que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.

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