Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O sábio e os sabidos


Giannotti foi sempre o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo

Por Simon Schwartzman

“Vem me fazer uma visita”, disse-me José Arthur Giannotti da última vez que nos vimos, num seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando-me de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente acerca do que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim e ele sorriu, contente: “Viu como é simples? Até você entende!”.

Na verdade, não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar. Para os demais foi, sem dúvida, importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira, que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de O Capital nos anos 50 e 60 e se prolonga nos anos em que presidiu e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importantes, no entanto, eram a permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas. E fazendo pensar.

Mas o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação e convivência social, que geram mundos compartilhados de “jogos de linguagem”, em cujo interior adquirem significado. A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nessas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação dessa humanidade comum que nos une, até mesmo a nossos adversários.

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É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre A Universidade em Ritmo de Barbárie, escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, criada nos primeiros anos da Nova República. O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que punham em risco sua própria razão de ser e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”, diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”. O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos. É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária. Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária e para isso, diz-nos Giannotti, é preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez a universidade brasileira se tornar uma “fábrica de sabidos”. As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes com base na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa, de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo, que buscava Giannotti, não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti formou-se no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, em que se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”. Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti manteve-se sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Vem me fazer uma visita”, disse-me José Arthur Giannotti da última vez que nos vimos, num seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando-me de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente acerca do que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim e ele sorriu, contente: “Viu como é simples? Até você entende!”.

Na verdade, não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar. Para os demais foi, sem dúvida, importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira, que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de O Capital nos anos 50 e 60 e se prolonga nos anos em que presidiu e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importantes, no entanto, eram a permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas. E fazendo pensar.

Mas o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação e convivência social, que geram mundos compartilhados de “jogos de linguagem”, em cujo interior adquirem significado. A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nessas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação dessa humanidade comum que nos une, até mesmo a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre A Universidade em Ritmo de Barbárie, escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, criada nos primeiros anos da Nova República. O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que punham em risco sua própria razão de ser e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”, diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”. O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos. É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária. Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária e para isso, diz-nos Giannotti, é preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez a universidade brasileira se tornar uma “fábrica de sabidos”. As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes com base na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa, de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo, que buscava Giannotti, não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti formou-se no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, em que se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”. Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti manteve-se sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Vem me fazer uma visita”, disse-me José Arthur Giannotti da última vez que nos vimos, num seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando-me de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente acerca do que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim e ele sorriu, contente: “Viu como é simples? Até você entende!”.

Na verdade, não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar. Para os demais foi, sem dúvida, importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira, que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de O Capital nos anos 50 e 60 e se prolonga nos anos em que presidiu e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importantes, no entanto, eram a permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas. E fazendo pensar.

Mas o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação e convivência social, que geram mundos compartilhados de “jogos de linguagem”, em cujo interior adquirem significado. A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nessas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação dessa humanidade comum que nos une, até mesmo a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre A Universidade em Ritmo de Barbárie, escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, criada nos primeiros anos da Nova República. O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que punham em risco sua própria razão de ser e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”, diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”. O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos. É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária. Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária e para isso, diz-nos Giannotti, é preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez a universidade brasileira se tornar uma “fábrica de sabidos”. As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes com base na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa, de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo, que buscava Giannotti, não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti formou-se no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, em que se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”. Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti manteve-se sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Vem me fazer uma visita”, disse-me José Arthur Giannotti da última vez que nos vimos, num seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando-me de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente acerca do que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim e ele sorriu, contente: “Viu como é simples? Até você entende!”.

Na verdade, não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar. Para os demais foi, sem dúvida, importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira, que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de O Capital nos anos 50 e 60 e se prolonga nos anos em que presidiu e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importantes, no entanto, eram a permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas. E fazendo pensar.

Mas o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação e convivência social, que geram mundos compartilhados de “jogos de linguagem”, em cujo interior adquirem significado. A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nessas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação dessa humanidade comum que nos une, até mesmo a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre A Universidade em Ritmo de Barbárie, escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, criada nos primeiros anos da Nova República. O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que punham em risco sua própria razão de ser e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”, diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”. O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos. É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária. Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária e para isso, diz-nos Giannotti, é preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez a universidade brasileira se tornar uma “fábrica de sabidos”. As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes com base na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa, de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo, que buscava Giannotti, não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti formou-se no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, em que se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”. Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti manteve-se sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“Vem me fazer uma visita”, disse-me José Arthur Giannotti da última vez que nos vimos, num seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando-me de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente acerca do que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim e ele sorriu, contente: “Viu como é simples? Até você entende!”.

Na verdade, não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar. Para os demais foi, sem dúvida, importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira, que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de O Capital nos anos 50 e 60 e se prolonga nos anos em que presidiu e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importantes, no entanto, eram a permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas. E fazendo pensar.

Mas o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação e convivência social, que geram mundos compartilhados de “jogos de linguagem”, em cujo interior adquirem significado. A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nessas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação dessa humanidade comum que nos une, até mesmo a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre A Universidade em Ritmo de Barbárie, escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior, criada nos primeiros anos da Nova República. O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que punham em risco sua própria razão de ser e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”, diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”. O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos. É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária. Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária e para isso, diz-nos Giannotti, é preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez a universidade brasileira se tornar uma “fábrica de sabidos”. As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes com base na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa, de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo, que buscava Giannotti, não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti formou-se no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, em que se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”. Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti manteve-se sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

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