O Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a arbitrar uma questão simples, qual seja: o art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas, é constitucional? O referido dispositivo, na prática, distingue o tratamento jurídico-penal dado pelo Estado aos usuários e aos traficantes de drogas. Na lei está escrito que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo” quaisquer drogas para consumo pessoal não está sujeito a pena de prisão, mas sim a medidas menos gravosas, como advertência, prestação de serviços à comunidade ou participação em programa educativo sobre os malefícios das drogas. Ou seja, o porte de quaisquer drogas, desde que para consumo pessoal, foi despenalizado pelo Congresso há 18 anos.
Bastava ao STF, portanto, decidir se essa escolha do Poder Legislativo está ou não de acordo com a Constituição de 1988. Tivesse a Corte seguido por esse bom caminho, o País não teria sido tragado para uma crise institucional – mais uma – absolutamente desnecessária sobre uma questão que, ademais, nem remotamente figura no rol das grandes prioridades nacionais.
Incontidos como têm sido, os ministros da mais alta instância do Poder Judiciário não só se imiscuíram no que não deveriam, como ainda se colocaram na constrangedora posição de apregoadores da quantidade de gramas de maconha que caracterizaria o porte da droga para uso pessoal ou para fins de tráfico. E é o caso de questionar por que apenas maconha, quando a Lei de Drogas não especifica substância alguma.
Vivêssemos tempos normais, prevaleceria o comedimento institucional, e os ministros do STF teriam decidido, preferencialmente em votos breves e diretos, se a distinção entre as sanções impostas a usuários e traficantes de drogas se coaduna ou não com a Constituição. Era tão simples quanto isso. Mas o País não vive tempos normais, como é sabido, de modo que a maioria dos ministros achou que era o caso de ir além da provocação original e, a pretexto de mitigar uma tragédia social real – a discriminação racial –, usurpou uma competência do Congresso ao fixar “parâmetros objetivos” para aquela diferenciação.
Ninguém de boa-fé haverá de negar que, nas ruas Brasil afora, o que fará com que os indivíduos flagrados portando drogas sejam tratados como usuários ou traficantes são a cor da pele e a classe social a que pertencem. As penitenciárias e delegacias do País estão amontoadas de “traficantes” majoritariamente jovens, negros e pobres que foram presos portando a mesma quantidade de drogas, às vezes até menos, que portavam outros tantos brancos – os quais, quando muito, só foram submetidos a uma carraspana do policial que os abordou.
O busílis é que foi da sociedade, por meio de seus representantes eleitos no Congresso, a decisão de deixar a cargo da autoridade policial, no momento da prisão, a verificação das circunstâncias que levam à caracterização do porte de drogas para uso pessoal ou para tráfico. Se essa decisão foi certa ou errada, não é papel do STF decidir, mas, como é óbvio, do próprio Congresso.
Transcorridas quase duas décadas desde a despenalização do porte de drogas para uso pessoal, a sociedade pode entender que a lei, tal como está escrita, agravou a mazela da discriminação racial. Se é esse o caso, cabe aos cidadãos pressionar seus representantes eleitos para que estes fixem critérios objetivos para a distinção. Numa rara e muito bem-vinda autocrítica durante o julgamento, o ministro Luiz Fux foi muito feliz ao enfatizar, à beira da exasperação, que “o Brasil não tem um governo de juízes”. Fux reconheceu as críticas legítimas de que o STF “estaria se ocupando de atribuições próprias dos canais de legítima expressão da vontade popular, reservadas apenas aos Poderes integrados por mandatários eleitos”.
O Brasil só terá a ganhar se as palavras do magistrado carioca forem bem assimiladas por seus pares. A um só tempo, elas lançaram luz sobre o papel institucional da Corte Constitucional e, de forma indireta, reforçaram a ideia de que a legitimidade do STF e a força de sua jurisprudência no tempo vêm da impessoalidade das decisões colegiadas, não do protagonismo vaidoso daqueles que o integram.